As touradas, a sua transmissão na RTP, a ONU, a ERC e a resposta ao Provedor do Telespectador

por João Estróia Vieira,    31 Julho, 2018
As touradas, a sua transmissão na RTP, a ONU, a ERC e a resposta ao Provedor do Telespectador
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Face aos muitos emails que foram enviados nos últimos tempos por plataformas anti-tourada, protestando contra a contínua transmissão das touradas e em horário nobre, o Provedor do Telespectador da RTP fez chegar a sua resposta ao assunto:

“Agradeço a sua mensagem.

Ela é em tudo semelhante a outras que recebi com igual teor. Houve mesmo defensores da sua posição que me enviaram mais do que uma mensagem. Também tenho recebido mensagens favoráveis à transmissão de touradas pela RTP. Já no ano passado, ao tomar posição sobre esta matéria, indiquei claramente que a decisão quanto à interdição da televisão pública transmitir touradas não deve estar dependente da opinião dos seus diretores, ou do seu presidente.

De facto e como certamente saberá, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social pronunciou-se favoravelmente à transmissão de touradas. Também o Parlamento, em assunto conexo, voltou, há menos de um mês, a chumbar diploma para acabar com as touradas.

Neste contexto e para além da minha opinião pessoal não creio que a RTP deva desautorizar as instâncias que regulam a sua atividade, interditando o que estas aprovam.

m/ cumprimentos,

Jorge Wemans

Provedor do Telespetador”

Entre as considerações, como se pode ler, refere que “não creio que a RTP deva desautorizar as instâncias que regulam a sua actividade, interditando o que estas aprovam.” O Provedor, Jorge Wemans, demonstra confusão nos termos empregues nesta afirmação. Uma coisa é a não transmissão, outra é a não transmissão em horário nobre, e ainda outra será a sua interdição, algo que não acontece pois quem quiser continuar a ver tourada (ao vivo e a cores) poderá sempre fazê-lo com a aquisição do respectivo ingresso ou, se preferir, através dos canais privados existentes em várias operadoras (que não interessa agora elencar) dedicados à tauromaquia.

Muito diferente de considerar que não há qualquer impedimento a que as touradas devam ser transmitidas é precisamente o seu contrário, ou seja, a consideração de que devem (!) ser. E em vez de uma posição que se deveria manter isenta, imiscuindo-se de optar por um dos lados numa matéria tão sensível e divisória no actual panorama social português, a RTP continua a promover esta prática com o dinheiro dos contribuintes – que poderia ser canalizado para conteúdo muito mais educativo.

A RTP não cede. Nem nos horários nem, muito menos, nas transmissões. Para isso baliza-se quer na não aprovação do projecto de lei (“Também o Parlamento, em assunto conexo, voltou, há menos de um mês, a chumbar diploma para acabar com as touradas.”) – cujo pronuncio sobre a proibição das touradas foi, de facto, votado contra, apesar da divisão parlamentar em relação ao assunto -, quer num “parecer” da ERC, que passamos a desconstruir, não sem antes admitir que de facto não existem “quaisquer impedimentos legais à sua transmissão” – mas deviam, como já vamos ver. Ora, isto está longe de querer dizer que a ERC se pronunciou “favoravelmente à transmissão de touradas“. Apenas não se pronunciou contra.

No entanto, a ERC considera também que as touradas não são “susceptíveis de influir negativamente na formação da personalidade das crianças e de adolescentes”. Baseado no quê? No sentido contraditório do que refere, a ERC revela desconhecimento ou ignora algumas opiniões e factos em contrário:

Em 2008 o Tribunal Judicial de Lisboa, após providência cautelar interposta pela Associação ANIMAL, concluiu que as touradas eram “um programa susceptível de influir de modo negativo na personalidade das crianças ou de adolescentes”.

Em 2016, a Ordem dos Psicólogos emitiu um parecer (que convidamos a ler na íntegra) e que conclui com “da evidência científica enunciada parece ressaltar o facto de que a exposição à violência (ou a actos interpretáveis como violentos) não é benéfica para as crianças ou para o seu desenvolvimento saudável, podendo inclusivamente potenciar o aparecimento de problemas de Saúde Psicológica”.

Mas mais importante parece ser ainda este último: em 2014, o Comité dos Direitos da Criança, orgão criado com o objectivo de monitorizar a implementação e cumprimento da Convenção sobre os Direitos da Criança, pronunciou-se precisamente sobre as touradas, dedicando dois capítulos ao “bullfighting” na parte da “violência sobre as crianças” (título curioso), na sua página 10:

Bullfighting
37. The Committee is concerned about the physical and mental well-being of children involved in the training of bullfighting, and performances associated with it, as well as the mental and emotional well-being of child spectators who are exposed to the violence of bullfighting.
38. The Committee, with a view to the eventual prohibition of the
participation of children in bullfighting, urges the State party to take the necessary
legislative and administrative measures in order to protect all children involved in
bullfighting training and performances, as well as in their capacity as spectators. This
may include increasing the minimum age of 12 years for the training, including in
bullfighting schools and private farms, and for participation of children in
bullfighting, as well as increasing the minimum age of 6 years for children allowed to
attend such events as spectators. The Committee also urges the State party to
undertake awareness raising measures about the physical and mental violence
associated with bullfighting and its impact on children.

(Podem ler o parecer na íntegra aqui)

A ERC opta ainda pela consideração das touradas como “parte integrante da herança cultural lusa”, uma afirmação completamente subjectiva. Só agora, em 2018 se passou a criminalizar a mutilação genital feminina, tida ainda como tradição em muitos países. Não será (ou seria) a mesma também passível de ser classificada como “herança cultural” pela nossa ERC? Todos os anos no festival de Yulin milhares de cães e gatos são brutalmente mortos e comidos, apesar de ser proibida a venda deste tipo de carne na China. “Herança cultural” – diria a ERC – passível de transmissão televisiva? E a luta de galos? E a luta de cães? Vamos mais longe – para aqueles que consideram que se passa melhor uma ideia com o exagero da mesma: e o apedrejamento ou o tempo dos gladiadores em arena, lutando contra humanos ou animais? Apenas enunciamos práticas reiteradas algures no tempo que foram ou são aquilo a que se pode chamar tradição, ou “herança cultural”. Ao contrário do que parece acontecer com a ERC, a sociedade tem vindo a evoluir em valores que rejeitam a violência gratuita quer sobre pessoas quer sobre animais e, prova disso, foi a proibição de várias destas práticas aqui referidas. Renunciou-se à herança.

Considerações à parte sobre se a proibição da tourada – mais importante e consensual que a proibição definitiva das touradas parece-nos ser uma discussão séria sobre alternativas ou formas de contornar a violência ligada à mesma. Actualmente existem alternativas que não fazem com que os touros tenham de sofrer ou sangrar em arena, como por exemplo a protecção no dorso do touro ou o uso de velcro. Então para quê continuar nestes moldes e não evoluir?

A RTP, empresa do Estado sustentada com o dinheiro dos contribuintes, e o seu Provedor, o Jorge Wemans, ignoram o parecer da Ordem dos Psicólogos, a decisão do Tribunal Judicial de Lisboa, o parecer do Comité dos Direitos da Criança da ONU e a vontade reiterada de grande parte das pessoas que protestam (mais relevantes no panorama legal e social que o da ERC) contra a transmissão de touradas, pelo menos nos moldes actuais. Não há, da parte da RTP, qualquer mudança ou cedência em relação à sua posição. Nem sequer há uma tentativa de discussão, diálogo, como demonstra o “tom” do email.

Contra tanta contestação e opiniões contrárias, o que motiva a RTP a continuar a transmitir touradas e, pior, a promovê-las como se nada fosse, usando dinheiro público que devia ser melhor empregue? Não estará na altura de evoluirmos e deixarmos a tourada para quem a quer realmente ver, não com dinheiro dos contribuintes, mas sim dirigindo-se por si próprio ao recinto ou mudando para os canais dedicados ao tema?

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