As mães da psicanálise infantil: Melanie Klein e Anna Freud

por Lucas Brandão,    15 Novembro, 2020
As mães da psicanálise infantil: Melanie Klein e Anna Freud
Sigmund Freud com a filha Anna Freud, em 1922 / DR
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Melanie Klein e Anna Freud (sim, filha de Sigmund Freud) iluminaram a psicanálise do século XX com os seus contributos. Klein e Freud, ambas nascidas na Áustria, mas naturalizadas inglesas, foram consideradas as progenitoras da psicanálise infantil. Klein, nascida a 1882 e falecendo a 1960, dedicou-se à análise do desenvolvimento da psique infantil em relação aos outros e ao exterior, nomeadamente no desenvolvimento do subconsciente e das suas idealizações. Por sua vez, Anna Freud dedicou-se ao estudo do ego e das suas linhas de desenvolvimento. Na base, porém, o entendimento de como as crianças crescem mentalmente e de como essa mente se desenvolve, em relação com o exterior, mas com repercussões interiores presentes e futuras.

Melanie Klein

Melanie Klein foi das primeiras a utilizar a psicanálise tradicional, tal como Sigmund Freud a delineou. No entanto, fê-lo, em especial, com crianças; e fê-lo de uma forma inovadora, procurando usar brinquedos na interação com estas, de forma a chegar às suas conclusões quanto às relações que as crianças estabeleciam com os objetos e com a realidade exterior. É nesta medida que importa, de Freud, as noções de representação interna, desde a introspeção, a representação do eu e do objeto e da internalização do eu e do outro, de forma a detetar, desde cedo, aquilo que leva a que algumas crianças vão desenvolvendo estados paranóicos e/ou, até, depressivos. Navega, assim, no que é o subconsciente da mente, procurando burilar as ideias que são apresentadas por Freud no Complexo de Édipo, invertendo a interpretação. Assim, considerava antes a mãe como fundamental no desenvolvimento relacional e humano da criança, embora considerasse que esse complexo se manifestasse, somente, no primeiro ano de vida, com a fase oral.

Assim, contrapõe com uma teoria de posições psíquicas, nomeadamente com a apresentação de uma posição que a criança assume desde os quatro meses de idade até aos seis anos: a esquizo-paranoica. Uma posição, por si só, é, assim, entendida como um conjunto de funções psíquicas que correspondem a uma certa fase do desenvolvimento da criança e que acontecem no primeiro ano de idade da criança, mas que se podem manifestar, mediante serem reativadas, mais tarde na sua vida. Esta posição que a criança assume é uma ansiedade paranoica, receosa da maldade vinda de fora, embora derive de uma projeção da pulsão da morte que parte de dentro e que a torna agressiva e arisca. Enquanto o estado esquizo (que separa o bem do mal e que ativa o mecanismo defensivo) não estiver consagrado no ego, a manifestação paranoica será feita com base nesse receio. Para Klein, o desenvolvimento saudável da criança dá-se quando ela consegue separar o bem do mal nas suas interpretações internas, feitas do mundo e dos seus objetos, ao mesmo tempo que separa o ego no bem e no mal. No entanto, a esta posição, a criança chega à posição depressiva, em que percebe que o todo de um dado objeto pode conter, dentro de si, o bem do mal, pelo que o receio de ser ferido passa a um receio de ferir o outro. Daqui nasce a capacidade de se sentir culpada, de reprimir e de reparar o mal que, eventualmente, faz, as bases do sentimento do amor. Este conceito de reparação torna-se crucial, já que se trata de fazer uma reparação mental ao mundo que, interiormente, está desequilibrado, tanto preso nessa culpa ou ainda complacente com o seu presente. Klein considera este como um desenvolvimento determinante para o ser humano poder viver em sociedade, tomando uma maior consciência do que lhe circunda.

Klein acreditava, assim, na existência da pulsão da morte, no sentido em que todos os organismos vivos estariam orientados para o estado inorgânico da morte, no confronto entre o instinto da vida, o Eros, vocacionado para sustentar e unir a vida; e o da morte, o Thanatos, que visava destruir e desintegrá-la. Apesar de também se rever na tripartição da mente, entre id, ego e superego, acreditava que as relações psicodinâmicas seriam bem mais complexas e quase indecifráveis, nas quais o superego já está presente desde o nascimento, algo que Freud não defendia. Isso não a impediu de progredir nos seus estudos e nas suas investigações com crianças e de esmiuçar a relação entre a mãe e o filho. Assim, considerou que esta se sustentava mais do que das necessidades fisiológicas da alimentação e de cuidados logísticos. É a partir das suas mães que as crianças vão desenvolvendo as primeiras interações com o outro, mostrando a sua curiosidade com o toque e com os demais sentidos, desde a visão à própria amamentação. Tudo isto alimenta uma afeição que vai reagindo àquilo que a sua progenitora faz e sente.

Nesta sequência, Klein desenvolve uma teoria de relação com o objeto, que se baseia nessa relação de maternidade. As interações que a criança vai tendo com a mãe nos seus primeiros instantes de vida, que vão gerando sentimentos bons e menos bons, vão ajudando a desenhar a futura personalidade desta, em especial na forma como consegue lidar com essas reações. A “phantasia” subconsciente é uma imagem potencial que vai encaminhando possíveis estados mentais mais complexos. É um cenário que se vai transformando consoante a criança vive e entra em contacto com a realidade e que preludia o desenvolvimento do pensamento, com este a basear-se e a derivar dessas “phantasias”. Quando estas entram em relação com os sentidos, permitem que a sua própria perceção do mundo externo se torne mais palpável e levam a uma fase determinante, em que a criança tolera ou não aquilo que vê no mundo exterior. É isso mesmo que leva às posições acima referidas. Para se defender, a criança cria as suas identificações projetivas, que permitem que a criança, com o seu ego cada vez mais desenvolvido, possa retirar o perigo e o mal daquilo que perceciona da realidade e possa interagir e sentir-se confortável com os objetos bons, repetindo os seus comportamentos e os seus atributos, que se conciliam num só na própria organização mental do eu. Essa dimensão boa acaba por ajudar a defender-se da ansiedade e por tornar a criança mais próxima e íntima com o exterior e com as suas partes, desde as pessoas aos objetos. Para o mal, porém, pode conduzir sentimentos menos positivos para o outro, ao mesmo tempo que o faz com sentimentos positivos Aliás, são esses objetos, essas imagens, que são as principais partes da constituição da psique e cuja relação estabelecida com o exterior permite à criança desenvolver o seu pensamento e o seu comportamento.

Aliás, os próprios feitos que as crianças vão fazendo são percebidas por estas a partir das reações que os seus pais têm, nomeadamente de alegria. Assim, elas pretendem provocar sensações de alegria e de gosto. No entanto, existem, ainda, os casos dos bebés apáticos, que não conseguem superar os seus obstáculos psíquicos e que, num turbilhão de emoções, acabam por se excluir das relações com o exterior, limitando a sua própria aprendizagem. Plantam-se sementes para eventuais neuroses futuras, que Klein procura antever. Aliás, Klein procurava ter um trabalho bem próximo delas, analisando a sua forma de brincar como o modo primário de comunicação emocional. Analisava, assim, a forma como interagiam com os brinquedos e os possíveis significados subjacentes às formas de brincar e aos objetos escolhidos. À luz do que teorizava, percecionava as suas “phantasias”, na relação que as crianças estabeleciam com os objetos e que, sendo primárias e quase inatas, ilustravam a psique das crianças. Entre as quais, estão os sentimentos de ódio, de ganância e de inveja, que eram exprimidos nessas “phantasias” feitas de impulsos destrutivos, partindo da tal pulsão da morte, que acaba por direcionar sentimentos contraditórios para os objetos bons. Isto opõe-se à gratitude, que reconhece e valoriza esses objetos.

O enfoque na dimensão da agressão por parte de Klein levou-a a um conflito de ideias com Anna Freud, à data membro da British Psychoanalytical Society, e dos seus colegas. Estes eram mais conservadores e menos recetivos a uma revisão tão profunda à teoria de Freud pai, contra uma falange que apoiava a proposta de Klein. No final, essa sociedade acabaria por ser palco da assinatura de um acordo que definia três vias para a formação de psicanalistas: a de Freud, a de Klein e a do “Middle Group”, que era independente e se autonomizava de ambas as outras linhas. Para a história, porém, ficava uma psicanálise que defendia um conjunto de relações internalizados no subconsciente, nomeadamente em relação aos outros por parte do eu, que eram inatas e que afetavam o desenvolvimento psicológico das crianças. Os objetos que materializavam essas relações eram as expressões de emoções várias, desde o desejo ao medo.

Anna Freud

Por sua vez, Anna Freud, que chegou a dar aulas e se focou, em muito, nessa dimensão letiva e académica, procurou replicar as fontes e a metodologia do seu pai, embora com uma vocação diferente: a das crianças. Por exemplo, identificou os devaneios que se têm pelo dia fora (o daydreaming) como elaborações das primeiras e originais fantasias da masturbação. No entanto, foi na psicanálise infantil que o seu contributo, de facto, ganhou força. Klein, que havia proposto as suas ideias algum tempo antes, foi contrastada com a ideia de que o/a analista das crianças acaba por ser um processo erróneo, visto que é feita uma transferência do papel maternal/paternal para o/a analista, que representa o pai ou a mãe ou até um(a) segundo/a pai/mãe original, o que, apesar de normalizado, acaba por entrar em conflito no desenvolvimento psíquico da criança.

É nesta fase que desenvolve a conhecida “psicologia do ego”, onde se sustentou nos conceitos previamente apresentados pelo seu pai: no de regressão (o voltar a um estado mental considerado mais seguro e menos exigente), repressão (um sentido é conscientemente empurrado para o subconsciente, por ser socialmente inaceitável), formação de reações (atuar de forma contrária àquilo que o subconsciente pretende), projeção (ter um sentimento socialmente inaceitável e vê-lo nas ações dos outros), sublimação (a expressão da ansiedade em modos socialmente aceitáveis), entre outros. A estes conceitos, sendo que os discriminados são aqueles que Anna destacou, chamou-lhes de de mecanismos de defesa, mecanismos intelectuais e motores de vários graus de complexidade que surgem no decurso da aprendizagens voluntária e involuntária. Como expressão da ansiedade subjacente, Freud chamou-lhe “ansiedade-sinal”, tratando-se de um sinal que decorre ao nível do ego de uma tensão dos instintos que é antecipada pela criança. É uma ansiedade sentida ao nível do corpo e da mente e o sinal que a exprime mostra a necessidade do sujeito assumir uma postura defensiva.

Anna Freud, como referido, inspirou-se nos escritos do seu pai, mas também na sua própria experiência médica. O enfoque, conforme dito, voltou-se para as crianças, nomeadamente no seu período de latência, que parte dos cinco anos até ao início da puberdade. Com o ego como referência, percebeu que os impulsos agressivos são intensificados ao ponto de necessidades se tornarem elementos de fúria e de raiva, que colocam em perigo a estrutura do ego, nomeadamente dos padrões reativos desenvolvidos. Freud criou, em Londres, um autêntico grupo de analistas do desenvolvimento infantil – onde se inclui o alemão Erik Erikson e Donald Winnicott, embora com afinidades ao pensamento de Klein -, que detetou que elementos sintomáticos de uma criança desencadeariam patologias mentais e psíquicas futuras, especialmente já na adultidade. Para melhor poder acompanhar esse processo, Freud apresentou o conceito de linhas desenvolvimento, que mostram o crescimento teoricamente normal de um ser humano, desde a fase de dependência total até à autonomia emocional. Assim, procurou estudar as interações e as interdependências entre os aspetos do crescimento da criança e o seu meio envolvente, incluindo os outros. A vontade que move a criança a obter os meios para dar solução às suas necessidades acaba por se tornar no grande objeto de estudo, em especial na forma como desenha as estruturas do ego e de como encara o superego.

Assim, um indivíduo pode subir ou descer nas suas linhas de desenvolvimento, que, normalmente, se justifica em relação à forma como encara o meio ambiente. No entanto, para Freud, as linhas de desenvolvimento básicas e convencionais passariam por um grupo de etapas-base. Assim, e partindo da unidade biológica da mãe e da criança, o sentimento de pertença de parte a parte deve ser desconstruído e deixado de parte, o que gera uma ansiedade em ambos, dada a necessidade de separação. Isto até ao primeiro ano de idade. Daí, há a relação entre a criança e o objeto, em que há a necessidade a ser satisfeita a ela e na qual a mãe se torna boa ou má em função de atender a essa necessidade. É aí que a criança consegue ter uma representação mental plena da sua progenitora e desenvolve a capacidade de ter relações recíprocas, que conseguem superar a frustração e o desagrado. Já após passar o ano de idade, uma fase ambígua: a criança quer ser independente, mas, ao mesmo tempo, deseja a constante proximidade da mãe, nascendo um conflito dentro de si. No entanto, percebe que é posto de lado de alguns aspetos da relação entre os seus pais, pelo que entra em choque com o parente do sexo oposto.

Esta fase acaba por ser aliviada com o período de latência, onde a vontade da criança diminui e se refreia no contacto com o exterior, com a sua comunidade e com a escola. Porém, antes de chegar a adolescência, há uma fase de revolta, que faz reavivar as fantasias infantis e os conflitos do passado, dando-se uma regressão. Chegada essa altura da sua vida, encontra dois novos mecanismos de defesa (a intelectualização, onde o pensamento é usado em vez do sentimento, e o ascetismo, onde sustém os seus prazeres sensuais), de forma a defender-se dos instintos carnais crescentes. A dificuldade passa, agora, por transferir as suas emoções dos seus pais para os demais objetos do exterior. Falhas nestes períodos podem gerar dificuldades irreversíveis no futuro, nomeadamente na sua estabilidade mental e psíquica e nas relações que estabelece com os outros. Para melhor análise, Freud criou os perfis de desenvolvimento, de forma a diagnosticar e a classificar o desenvolvimento da criança. Os elementos que recolhe são os seus sintomas, o seu histórico familiar, a sua experiência pessoal, o percurso do seu desenvolvimento, os seus pontos de fixação e de regressão, os seus conflitos passados e presentes e as suas caraterísticas gerais.

Em todo este percurso, o ego é o grande supervisor e faz uso dos mecanismos de defesa referidos para combater os instintos inerentes à expressão do id. É esta a grande distinção do trabalho de Freud pai, mais preocupado com a interpretação dos sonhos do que com a atuação do ego perante as expressões do subconsciente. Apesar disso, nota-se uma grande consideração e atenção para aquele que lhe legou o interesse pelo estudo a mente humana. Aliás, tal foi a sua atenção para que a área que o seu pai ajudou a popularizar que viria a fundar o futuro Anna Freud National Centre for Children and Families, um centro de investigação e de tratamento dedicado à saúde mental infantil.

Melanie Klein e Anna Freud abriram as portas para que a psicanálise se pudesse direcionar para as crianças, para o seu apoio e acompanhamento, de forma a poder identificar e analisar perturbações mentais e psíquicas, que se prolongam até à adultidade. De um lado, Melanie Klein, que se fixou por Berlim e que se interessou por psicanálise após ela mesma ter ido a sessões da especialidade. Do outro, Anna Freud, que cresceu de perto na área, com o seu pai, Sigmund, e que fez carreira em Inglaterra. Não obstante serem duas mulheres numa sociedade de intelectuais pejada de homens, tornaram-se duas das mais conceituadas psicanalistas daquele século XX, com caminhos distintos, embora de fundamental importância para que as próprias crianças tivessem o devido e adequado cuidado pela sua saúde mental. Nesse sentido, desenhou-se um percurso, embora muito sustentado em conceitos associados à psicossexualidade, que ajudou a que os cuidados da saúde mental se tornasse menos tabu e pudesse, enfim, ser vista como necessidade básica da humanidade.

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