Ary dos Santos, um poeta com uma extensão extracorporal

por Romão Rodrigues,    28 Dezembro, 2020
Ary dos Santos, um poeta com uma extensão extracorporal
Ary dos Santos / DR
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“Poeta de combate disparate
palavrão de machão no escaparate
porém morrendo aos poucos de ternura.”

Feira do Livro, Lisboa, agosto de 2020. O nonagésimo aniversário traduziu-se na primeira edição através da qual ninguém trespassava a sentinela na área delimitadora do recinto sem mordaça de efeito labial e nasal e a respetiva dosagem de lixívia para as palmas das mãos e espaços interdigitais. Entre a pressa de atracar na primeira banca de venda e o percorrer furtivo de outras tantas que os pregos queriam suportar, o repouso sobre a parafernália de palavras e folhas que teimavam em saltar à vista, em catadupa.

O tempo foi esguichado pelo conta-horas, assim como a indecisão, as conversas em família sobre o calhamaço x e y, a espera diante do ramal de cabeças de livro em riste e os níqueis — a designação é benévola e inocente — resistentes, audazes soldados do período de férias, de modo a que permanecessem no bolso até à última gota de luxúria. Ary dos Santos regressou no braço, firme, e integrou a comitiva que comigo se deslocara à “pseudo euro-cidade”.

O usufruto da compra reinou meses mais tarde. No decurso de uma aula universitária que bradava aborrecimento e me impelia num comboio de bocejos, a obra poética aceitou ser arremesso e solução para o tédio.

Iniciei a travessia pela Liturgia do Sangue (1963). O sangue, o líquido ruborizado, sempre ele, apto a desbravar inúmeros caminhos pela densa e vasta floresta das emoções e da condição humana. Se Ecce Homo apresenta laivos de descrença, soterrando os deuses à efemeridade humana, Intróito representa a tão comum e sôfrega vontade de agarrar a pessoa amada e não mais dela se desprender. Soneto é a batalha interna em busca do manancial da angústia e do embate com os pecados destrinçados no senso comum e Viagem a demonstração in extremis da alma que tem sede do desconhecido, da descoberta e de todas as vicissitudes aí implicadas, mesmo que o medo a tolha.

De súbito, a transposição para o impressionante: Adentrei pelo Tempo da Lenda das Amendoeiras (1964): a mente perpetrou o plano da poesia teatral e ergue-se como instrumento ficcional acompanhado de um rei, uma princesa, um mago, uma bruxa, um curandeiro e um poeta.

Nessa mesma noite — e posterior madrugada — adornei, preveni e acalentei um cubículo glacial na região transmontana e folheei Adereços e Endereços (1965): o capítulo (re)veste a poesia e o próprio poeta, contornando-lhes as linhas e as feições e conferindo-lhes uma postura mais requintada, matura e com uma certa incumbência no decorrer das interações sociais, promovendo o estilo mordaz ao expoente profundo e supremo, simultaneamente.

A aproximação à época natalícia e a paradoxal diáspora familiar incitou-me ao Insofrimento In Sofrimento (1969): daqui, extraem-se as extensas antíteses provocadas pela simplicidade de uma palavra, os gritos mudos, os silêncios registados por elevados decibéis, uma burguesa descascada a bel-prazer de uma língua afiada (Pavana para Uma Burguesa Defunta), uma Lisboa pútrida e depravada (Lisbon By Night) e os ofícios que por si escorrem suor, lágrimas e indigência (A Pesca e A Cortiça). Resta, ainda, um Posfácio capaz de instigar à autorreflexão nos meios não líricos, recheado de defesa e resistência próprias, salvaguarda da sua espécie: através dos sete pecados capitais — e não somente os reunidos na Capital — Ary puxa a brasa à sua dourada.

Até que enfim! A quadra natalícia atravessou o globo terrestre. Todos os anos chegam, através das plataformas digitais, fotografias relativas ao período visado. Em 2020, precavi-me e debrucei-me sobre Fotos-Grafias (1970): aqui, observa-se o cruzamento de intervenientes literários de gerações díspares entre si com uma trabalhadora agrícola mártir do salazarismo (Catarina Eufémia) e uma ativista e ex-dirigente do Partido Comunista Português (Carolina Loff). Os ideais, a constatação de feitos (para si) gloriosos, as palavras de amor tecidas e os súbitos desejos traduziram-se nos versos dirigidos, postumamente ou não, capazes de redigir a construção de Ary enquanto poeta.

O capítulo que se seguia suplicava a vinda de abril. Para quê a espera, quando pode ser celebrado todos os dias? Escancarei as portas do pensamento, As Portas Que Abril Abriu (1975): a liberdade na sua plenitude; as palavras, soltas, percorrem um dos períodos mais negros da história do lusitanismo.

Continuei a folhear. O embevecimento fluía nas veias. Deslindei O Sangue das Palavras (1978): um aglomerado de poemas repletos de carga política (Aos Mortos-Vivos do Tarrafal, A Bandeira Comunista e Não Passam Mais), odes à fação operária, ao seu passado, presente e futuro (Soneto do Trabalho, A Terra e A Fábrica), uma tríplice de retratos velados e evidenciados por qualquer comum mortal (O Burguês, O Bombista e A Bruxa), uma homenagem a um companheiro falecido (Mais Pode a Vida) e até a descrição de umas férias algures (As Férias).

O fim. Sentia o término do livro. Talvez Ary o tivesse sentido também. Num propósito de 35, deixou apenas VIII Sonetos (1983-1984) onde ressalta à vista, num primeiro impacto, os tributos a Adriano Correia de Oliveira (Memória de Adriano) e a Manuel Maria Barbosa Du Bocage (Ao Meu Falecido Irmão Manuel Maria Barbosa Du Bocage), intitulado de “irmão” pelo poder da influência e das semelhanças satíricas.

Desde a juventude alvoroçada, um poeta com uma extensão extracorporal, as Asas. Num breve anexo, As Edições do Avante brindaram os leitores e depositaram na brancura do papel  as suas trovas imberbes. Na frescura do quinquénio, uma promessa cumprida:

“E canto na certeza do porvir,
Que todo o mundo é meu e eu vou partir
À conquista dos reinos da poesia”

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