Após uma leitura de Ratzinger

por Frederico Lourenço,    28 Fevereiro, 2019
Após uma leitura de Ratzinger
Ratzinger
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Como bem lembrou o Hugo van der Ding com um dos seus posts impagáveis, hoje é o aniversário da abdicação de Bento XVI. Por curiosa coincidência, acabei de ler ontem à noite um livro que há muito tempo me despertava curiosidade: o volume inicial da grande obra em três volumes de Bento XVI sobre Jesus de Nazaré.

Antes de explicar a razão da minha curiosidade e a minha reacção perante este livro, quero frisar uma questão inicial. Contrariamente ao que poderão pensar as pessoas que aqui me acompanham no Facebook e me conhecem como professor e tradutor de línguas clássicas e também como livre pensador que não esconde nem a sua homossexualidade nem o facto de ser «seguidor independente» de Jesus, tenho grande admiração por Joseph Ratzinger. Considero-o um homem de craveira intelectual superior, além de ser alguém que escreve de forma imensamente aliciante e bonita. Apesar das minhas discordâncias de fundo com o livro de Bento XVI, foi um prazer enorme lê-lo. E consigo, sem dificuldade, colocar-me na posição de um católico que prefere não saber muito sobre a discussão académica em torno do Novo Testamento e que lê este livro com um sentimento simples de encanto e de deslumbramento.

Todavia, este livro constitui uma autêntica des-educação no que toca ao estudo académico do Novo Testamento, porque padece de um defeito de proporções estonteantes: no seu Prefácio, Joseph Ratzinger anuncia que vai abordar a figura de Jesus de Nazaré tomando em linha de conta o método crítico-histórico, que se desenvolveu sobretudo nas universidades alemãs a partir do século XIX. Mas, na verdade, faz o contrário.

Fazer uma tal declaração de intenções, já de si, é algo de sísmico vindo da pena de um papa: o dirigente máximo da Igreja Católica anuncia, assim, no seu livro sobre Jesus, que vai tomar em linha de conta uma metodologia que a própria Igreja Católica proibiu até aos anos 60 do século passado; metodologia essa que implica, acima de tudo, aceitar que a Bíblia não foi escrita por Deus nem por inspiração do Espírito Santo, mas que, pelo contrário, é uma colectânea de textos escritos por pessoas humanas que, na sua maior parte, escreveram sem conhecimento dos outros textos que mais tarde integrariam a Bíblia; implica aceitar que essa tomada de consciência acarreta a constatação de que a Bíblia está cheia de contradições; e, no que toca em concreto aos Evangelhos, implica aceitar que muito daquilo que os evangelistas colocam na boca de Jesus são palavras de teor pós-pascal, isto é, palavras que projectam a visão de Jesus dos primeiros cristãos, que acreditaram que ele ressuscitara do túmulo onde alegadamente fora sepultado, mas que são palavras que, do ponto de vista crítico-histórico, o Jesus histórico nunca poderá ter dito.

No seu Prefácio, Bento XVI anuncia que vai demonstrar, com recurso ao método crítico-histórico, que o Jesus histórico e o Cristo da fé (isto é, o Filho de Deus, consubstancial ao Pai, etc. etc.) são a mesma pessoa e que, desde o primeiro momento em que encontramos Jesus no mais antigo dos quatro evangelhos (Marcos), o Jesus que se nos depara não é outro que não o Jesus do prólogo do Evangelho de João, o Verbo, que existira da presença do Pai desde o início.

Esta visão de Jesus Cristo é, evidentemente, a visão própria da teologia cristã, em concreto da teologia católica ortodoxa, com os seus séculos ricos de história, tanto em língua grega como em latina. Nem seria imaginável que um Sumo Pontífice católico pudesse ter outra visão de Jesus. Antes mesmo de iniciar a sua abordagem «crítico-histórica» a Jesus, Bento XVI já fixou a conclusão a que a sua investigação o irá levar; e essa conclusão não é outra que não a visão tradicional, anti-histórica e anti-crítica, da Igreja Católica.

O que surpreende, de facto, é a declaração de intenções no Prefácio do livro. Surpreende imensamente que um papa declare empreender essa viagem crítico-histórica. Talvez não surpreenda tanto que, na prática, essa viagem não aconteça e que o resultado final – que o Jesus investigado pelo prisma crítico-histórico seja afinal o Cristo da fé – seja análogo à investigação do ginecologista que, colocado perante a opção de explicar a origem dos bebés por via de uma cegonha que os traz de França ou por via da causa científica que leva à gravidez, opta (contra a ciência) pela cegonha.

De modo contrário ao método crítico-histórico, Ratzinger atribui valor «real» e «realidade» (ele gosta tanto das palavras alemãs «wirklich» e «Wirklichkeit»!) aos relatos dos quatro evangelistas, aos quais ele adscreve fidedignidade histórica, porque é, segundo ele, muito mais «lógico» (!) que assim seja. Toda a utilização do Antigo Testamento por parte de Ratzinger assenta na ideia da teologia cristã de que a chave de leitura da Escritura judaica é Jesus e que tudo o que lemos no Novo Testamento está prenunciado no Antigo. Esta ideia está completamente posta de parte pelo estudo crítico-histórico da Bíblia, visto que a Escritura judaica só pode ser entendida como Escritura… judaica. No seu tempo. No seu contexto. Como escreveu memoravelmente Robin Lane-Fox, «o que predisseram os profetas do Antigo Testamento acerca de Jesus? Numa palavra: nada».

Também o apelo permanente, por parte de Ratzinger, à inspiração divina dos evangelhos contraria tudo aquilo que o estudo crítico-histórico representa. Não se pode explicar por meio do conceito de «inspiração divina» a problemática do Novo Testamento a não ser em contexto teológico e homilético. Uma coisa é o padre que fala na missa, com todo o direito e legitimidade, da interpretação cristã dos evangelhos, partindo do pressuposto da sua absoluta coerência. Outra coisa é o académico que estuda os evangelhos do ponto de vista crítico-histórico, que não pode fechar os olhos às incoerências e, sobretudo, a todas as palavras «pós-pascais» colocadas retroactivamente na boca de Jesus pelos evangelistas.

Na missa, o padre tem toda a legitimidade em dizer que Jesus nasceu de uma virgem e que, na cruz, perdoou quem o crucificou e que, antes disso, perdoara uma mulher adúltera. O estudioso académico, que se dedica ao trabalho de entender os evangelhos por um prisma crítico-histórico, tem de admitir que o nascimento virginal é um equívoco baseado num erro de tradução; que Jesus provavelmente não perdoou na cruz quem o crucificou; e que provavelmente o episódio da mulher adúltera é uma invenção (sobre todos estes problemas vejam as notas à minha tradução dos Evangelhos).

Pessoalmente, como seguidor independente que sou de Jesus, compreendo bem o dilema de Bento XVI. Claro que eu adoraria que o método crítico-histórico me pudesse afiançar que Jesus disse todas as palavras que lhe são atribuídas no Evangelho de João, por exemplo. Eu adoraria que Jesus tivesse mesmo perdoado quem o crucificou; que tivesse mesmo perdoado a mulher adúltera; que tivesse conversado com a Samaritana; que tivesse ressuscitado dos mortos (sobre o nascimento virginal – como se costuma dizer – não faço questão). Mas também sou inteiramente livre de acreditar nisso se eu quiser, pois a Fé é por definição irracional; e sou livre de respeitar quem acredita nisso, seja ele católico, protestante ou outra coisa.

O que não posso nem devo fazer é o que Bento XVI faz no seu livro: afirmar que o método crítico-histórico pode ser usado para provar a «realidade» objectiva de todas estas coisas, confirmando a veracidade histórica dos evangelhos. Seria bonito acreditar que é a cegonha a trazer os meninos de França? Pessoalmente, acho melhor aceitarmos que a «realidade» é o que é, mesmo que não seja o que gostávamos que ela fosse.

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