“Apanhados pelo Vírus”, de David Marçal e Carlos Fiolhais: um manifesto pelo combate à desinformação da Covid-19

por José Malta,    27 Novembro, 2020
“Apanhados pelo Vírus”, de David Marçal e Carlos Fiolhais: um manifesto pelo combate à desinformação da Covid-19
Carlos Fiolhais / DR
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‘Apanhados pelo Vírus – Factos e mitos acerca da COVID 19’ trata-se da mais recente publicação da colecção Ciência Aberta, da editora Gradiva. Redigida pelo bioquímico David Marçal e pelo físico Carlos Fiolhais, a célebre dupla de divulgação científica volta em entrar em acção, desta vez com o tema que tem dominado o ano de 2020: a actual pandemia de COVID-19 que está a afectar o mundo inteiro. O sucesso nos trabalhos anteriores, nomeadamente com ‘Pipocas com Telemóvel e Outras Histórias da Falsa Ciência’, ‘Darwin aos Tiros e Outras Histórias de Ciência ’e ainda com ‘A Ciência e os Seus Inimigos’, mostra, mais uma vez, que temos excelentes comunicadores da ciência que trabalham arduamente na sua divulgação, combatendo a desinformação e as notícias falsas com que, muitas vezes, nos deparamos. Até porque, para além da pandemia, estamos também perante uma “infodemia”, uma avalanche de informação que, muitas vezes, é não fidedigna ou até mesmo falsa, e que consegue ser tão crítica como a pandemia de COVID-19. ‘Apanhados pelo Vírus’ vem mostrar isso mesmo através de uma escrita que consegue chegar ao leitor comum, independente da sua área ou formação, procurando esclarecer a sociedade em geral das potencialidades deste novo vírus e das perspetivas futuras em relação ao seu combate, evitando o menosprezo, mas também o pânico excessivo gerado por esta inesperada pandemia que está a afectar o mundo inteiro. Embora os “apanhados pelo vírus” sejam aqueles que acabaram por ser infectados pelo mesmo, existem outros “apanhados” que se deixam levar pela informação superficial, não fundamentada e por teorias da conspiração, apesar de não terem sido necessariamente infectados pelo vírus em si. 

O livro começa com uma breve introdução, seguindo-se de três capítulos escritos a meias, embora haja capítulos com uma maior influência de um dos autores, tudo com um conteúdo fundamentado através de referências na literatura científica. Na introdução, os autores focam-se na origem do vírus e da pandemia, tendo em conta algumas premonições de que uma situação idêntica poderia eventualmente surgir no futuro, evocando também as recentes epidemias do novo século, como o ébola, a gripe suína ou a primeira SARS (Severe Acute Respiratory Syndrome, Síndrome Respiratória Aguda Grave em português). A ciência, desde o dia 11 de Março, em que a OMS decretou oficialmente que estávamos perante uma pandemia, ganhou um principal e urgente objectivo: o estudo do vírus SARS-CoV2 busca por uma vacina que pudesse imunizar contra esse mesmo vírus. Os artigos científicos sobre tal temática multiplicaram-se, e o mundo teve que se adaptar à pandemia. Segundo os autores, “toda a humanidade passou a ser cobaia de uma gigantesca experiência não planeada” com a chegada deste vírus, que fez com que o mundo em si se tornasse também numa “aldeia” tanto para nós como para o vírus que anda connosco.

Capa do livro

No primeiro capítulo, intitulado por “O que sabemos”, os autores introduzem-nos o vírus SARS-CoV2, descrevendo as suas componentes do ponto de vista bioquímico e biológico, utilizando uma linguagem científica que acaba por ser bastante perceptível para o leitor, graças às analogias que conseguem simplificar todos os termos técnicos que surgem no texto. Também neste capítulo é abordado o modo como o vírus se propagou desde Wuhan, na China, até aos restantes países de outros continentes, com ênfase no modo como Portugal respondeu à chegada do vírus e na análise à evolução do número de infectados e de vítimas mortais ao longo do tempo. Há também uma descrição minuciosa dos restantes membros da família dos coronavírus, das vias de transmissão e do modo como o contágio pode ser reduzido, bem como a importância do uso das máscaras, dos grupos de risco, e uma perspectiva sobre os diferentes testes e sobre as possíveis futuras vacinas. Neste capítulo, existe um resumo bastante esclarecedor sobre tudo aquilo que se sabe sobre este vírus, tendo em conta que existem muitas coisas que ainda são desconhecidas.

No segundo capítulo, intitulado por “Infodemia”, existe uma extensa abordagem à tal desinformação sobre a COVID-19 e sobre os seus perigos, desinformação essa que tem, como principal meio de propagação, as redes sociais e até mesmo a imprensa. O termo “infodemia” já tinha sido introduzido noutros contextos semelhantes e significa um “excesso de informação sobre determinado tema, por vezes incorrecta e produzida por fontes não verificadas ou pouco fiáveis, que se propaga velozmente”, algo que conseguiu acelerar e propagar-se a uma velocidade muito maior do que a pandemia em si. Também neste capítulo são feitas várias associações aos inimigos da ciência, remetendo para a obra anterior “A Ciência e os Seus Inimigos”. São abordados os mais diferentes mitos: o vírus, nomeadamente, as teorias da conspiração sobre o facto de este ser considerado uma arma biológica feita na China, a influência das radiações 5G na origem do vírus. A pseudociência e as medicinas alternativas no tratamento do vírus, a sinofobia manifestada por aqueles que achavam que o vírus só atacava pessoas de etnia chinesa, bem como os mitos da cloroquina e da hidroxocloroquina são alguns dos temas tratados de forma bastante peculiar neste capítulo. Existem também inúmeras referências a perigosos líderes que ajudam a propagar a infodemia como o caso do presidente (cessante!) dos Estados Unidos da América e do presidente do Brasil.

No terceiro capítulo, intitulado por “Ciência em Directo”, é abordada a ciência que está a ser feita em tempo real, na medida de estudar, prevenir e combater ao máximo os casos de infenção do vírus. Neste capítulo, podemos encontrar um breve resumo sobre o progresso da medicina, desde o passado mais remoto até aos dias de hoje e os desafios que enfrentou ao longo dos anos, de modo a que conseguisse melhorar (e muito) as nossas condições de vida. A ciência, sendo um processo cumulativo, está, hoje, mais desenvolvida do que nunca e a evolução da medicina foi também feita através dos avanços das técnicas da química e da física. Este capítulo aborda também os desafios da pandemia, tendo em conta a tal ciência que está a ser feita quase diante dos nossos olhos numa situação urgente. Nem tudo o que é feito na ciência é infalível, e não se pode generalizar os bons resultados apenas com um artigo científico. Tem que haver outros trabalhos que consigam comprovar essa mesma evidência e este é um erro que muitas vezes apanha os media e o público em geral despercebido. É também feita uma abordagem às vacinas que poderão surgir, e cujos ensaios clínicos levam tempo a serem executados para além de que estes são processos que não são de todo lineares. Até lá, e para que tal seja exequível serão indispensáveis algumas das vertentes associadas ao nosso lado mais humano, como, por exemplo, a ética, a consciência crítica e a esperança, sendo esta última a palavra que encerra o livro.

‘Apanhados pelo Vírus – Factos e mitos acerca da COVID 19’ é, mais do que um livro sobre a pandemia que está a afectar e a condicionar-nos a todos por igual. É também um manifesto pelo combate à desinformação sobre a COVID-19, que procura enaltecer a importância da ciência na resolução de uma situação para a qual a humanidade, claramente, não estava à espera, nem nos seus piores sonhos, que pudesse, algum dia, existir nos tempos que correm. A verdade é que existe, e tivemos que arranjar maneiras de combater o vírus, de modo a salvaguardar algo muito mais importante do que a economia de que tanto se fala, e que muitos acham que prevalece sobre tudo o resto: vidas humanas. Apesar de terem surgido notícias bastante animadoras sobre as vacinas já prestes a ser comercializáveis, ainda temos um longo caminho a percorrer. A viabilidade das vacinas, o modo como serão distribuídas e as questões logísticas criarão algum impasse na resolução definitiva deste problema. A ciência não é infalível e ainda não consegue resolver tudo, tem o seu tempo próprio e terá sempre enormes desafios e lutas pela frente, como sempre teve. A esperança será sempre algo que nos permite continuar as nossas lutas nos enormes desafios que a humanidade já enfrentou. E é com esperança na ciência que esta será certamente uma batalha onde no final sairemos, apesar de tudo, vencedores.

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