António Lobo Antunes e o Nobel da Literatura

por Luís Osório,    11 Outubro, 2019
António Lobo Antunes e o Nobel da Literatura
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Meu querido António que se f*** o Nobel.

Mais uma vez perguntei: quem ganhou? E mais uma vez a resposta não foi a que esperava. Sei que agora não és consensual, porventura nunca o foste – alguém realmente o é? Os teus últimos livros são labirínticos, viagens a um inferno que tens aí dentro. Magicaste uma geringonça onde cabem todas as sombras do mundo. Deixaste de precisar de pessoas, de novas ideias, até de amigos, tens tudo aí nesse abismo fundo. E eu quando te leio, mesmo quando não te entendo, sinto-me tantas vezes a desfalecer, receio perder a coragem e a vontade de continuar o mergulho em ti.

1.

Sempre que penso em ti a memória é está, difícil, convulda.

Foram poucas as conversas, pelo menos não as suficientes para agora me custar a elas regressar. É curioso: dizias-me que há pessoas que nos tocam com um dedo e fica uma nódoa negra que não passa, mesmo quando disso estamos convencidos. É bem verdade. Deixaste-me uma nódoa negra que desvalorizei com zelo e constância. De vez em quando falo sobre o assunto com Daniel Sampaio, teu amigo íntimo, há uns contava-me da tua felicidade por seres reconhecido em Paris, mais uma vez, como um dos melhores escritores da história da literatura.
António. O que te poderei dizer das tuas palavras é pura memória. Tenho poucas certezas sobre a tua verdade, mas absoluta convicção de que se tornaram o espelho de ti quando de ti me recordo.
Tivemos um pequeno desentendimento e nunca nos encontrámos para o esclarecer – isso tem hoje pouca importância. Acontece-nos muitas vezes, não é? Passamos pela vida, abrem-se e fecham-se portas e vamos calando o que devíamos gritar e gritar o que calado deveria estar.

Fala-se muito da guerra quando de ti se diz. Não é coisa de que gostes de falar, mas do que me contaste recordo a lembrança sobre Ernesto Melo Antunes. As noitadas que passavam a discutir poesia ou em silêncio após os bombardeamentos, os jogos de xadrez e uma ou outra vez, no rescaldo dos confrontos, via-lo a passar nas trincheiras com uma lanterna na mão e a servir de alvo. Perguntaste-lhe porque o fazia e Melo Antunes ofereceu-te uma resposta que te marcou profundamente: «Sabes António, é que às vezes me apetece tanto morrer».

Os teus personagens estão vivos. Mesmo os dos livros mais antigos falam contigo quando tens o aparelho contra a surdez desligado. Então na escrita de um novo livro o exercício transforma-se na própria vida. Apaixonas-te por personagens, desesperas com o seu sofrimento, exaltas-te com as conquistas, torna-as vivas em ti. Elas crescem e tornam-se na tua companhia, na tua obsessão.
Quando escreves desligas o aparelho e abandonas-te a eles. Parecem gostar da exclusividade, detestam partilhar atenções. Há momentos em que desligas o aparelho mesmo quando sais do escritório onde escreves. Nos jantares incómodos utilizas o teu truque preferido, és um verdadeiro especialista naquilo que batizaste de técnica do “sorriso ausente”. Posso comprovar o quanto resulta… As pessoas a falarem-te de coisas – Dr. António como está hoje, gosto muito de si, os seus livros isto e aquilo, vi-o na revista ou na televisão – e tu a sorrires e a não fazeres a mais pequena ideia do que te dizem.

Deixas-me falar com os teus leitores agora? Tenho alguma pressão, vou agora moderar uma conversa no Teatro Nacional, imagina. Continuo esta carta, mas escreverei para os leitores, será mais rápido, António.

2.

Também por isso o intervalo dos livros costuma ser penoso. Não sabia o que fazer com o aparelho a funcionar, perdia-se nas ruas à procura de um sinal para um novo livro ou de um sinal para, de uma vez por todas, deixar de escrever e poder ser como os outros.
Era o seu grande paradoxo – desejava matar os personagens e libertar-se das páginas dos livros onde muitas vezes se sente aprisionado, mas não conseguia viver fora deles. O que fazer? «Por vezes sinto-me a rapar o tacho, percebes? Os escritores apodrecem com o tempo e o melhor é parar porque o mais certo é destruírem tudo o que conquistaram antes. Mas como fazer isso? Sinto-me culpado e infiel quando não escrevo».

Compreendia-o. Como não? Um dia um doente no Miguel Bombarda quis contar-lhe um segredo. E só o fez quando percebeu que estavam a sós e não havia perigo. Com enorme solenidade confessou-lhe que o mundo fora feito por trás, pediu-lhe para pensar no assunto, mas que não contasse o segredo a ninguém.
António não lhe ligou nenhuma, só que o segredo ficou e passou a ser uma tábua de sabedoria. A partir daquele momento percebeu que a sua escrita tinha de levar uma volta. Começou a escrever por trás para deixarem de estar visíveis os pregos e as costuras – a sua tentação de mostrar tudo pela frente, a tentação de mostrar o quanto era talentoso e genial passou a ser vista como uma ridicularia.
Falámos de loucura, claro. As nossas características amplificadas por defeito ou por excesso, para ele tão simples como isto. Mais uma vez as conversas comuns com o Daniel que nunca utiliza o termo normalidade para definir o que quer que seja. Há remédios para rir e chorar, há médicos que colocam limites mais largos ou estreitos para definir a loucura dos outros, há médicos que se tornam psiquiatras para perceber as suas próprias fronteiras e fantasmas.
Há tudo e não há nada. António sabe-o e pressente-o nas entrelinhas.

Recordo o que dizia das suas filhas e da morte.
Das três filhas, a propósito de uma qualquer opinião sobre os meus, confessou-me que desejava deixar-lhes um vinco na alma. Não uma nódoa negra, isso aparece na pele, mas não tem grandes consequências por serem centenas e indiscriminadas. Um vinco na alma é diferente, isso é uma ligação inexplicável, é amor verdadeiro e mais forte do que os livros e a própria vida. Sobre os filhos costumava dizer que não lhes pertenciam, mas que são mais dele do que dos outros.
Da morte há várias que o transformaram (que nos transformam) numa espécie de cemitério privativo aberto 24 horas por dia. Recordo-me de me ter falado da Margarida, a mãe da sua mãe, e do quanto se arrependeu de ter visto morta num caixão. Arrependeu-se muito porque agora, quando fecha os olhos, é morta que a vê e há dias em que lhe é impossível recordá-la viva. «Deitados e mortos parece que nada nos assenta bem, não achas?».

Acho que não, António. Nada nos assenta bem. Na escrita é, apesar de tudo, mais fácil. Tudo depende da habilidade com que falamos aos que fazemos nascer. Alexandre Herculano dizia de Almeida Garrett que este era capaz de todas as porcarias menos de uma frase mal escrita.
Lobo Antunes citava esta frase ao falar do amigo Reinaldo Arenas – grande escritor cubano que se suicidou depois de escrever o premiado Antes que Anoiteça. Falaram ao telefone nos dias que antecederam a sua partida e Reinaldo, angustiado, contou-lhe o que ia fazer.
Não lhe ligou nenhuma. Julgou que Arenas estava numa fase de “fúria dramática”, uma fase que encontrava a muitos no hospital, na vida e nos romances. Enganado estava. Arenas, em Nova Iorque, partiu como prometera. António ficou sem palavras, sem palavras e sem uma palavra.
O que farei quando tudo arde? Pergunta que, estou certo, nunca terá feito. António Lobo Antunes sabe que tudo arde desde o princípio.

E hoje, meu querido António, mais uma vez perguntei e mais uma vez me responderam que não. Mas olha, desliga o aparelho e lê os meus lábios… que se f*** o Nobel.

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