“Antígona”, com encenação de Mónica Garnel: de 442 a.C. para 2019

por Comunidade Cultura e Arte,    1 Outubro, 2019
“Antígona”, com encenação de Mónica Garnel: de 442 a.C. para 2019
Fotografia de Filipe Ferreira
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Antígona, em cena desde o dia 18 de Setembro até 6 de Outubro, com encenação de Mónica Garnel, prometia inaugurar com excelência a nova temporada do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Parecia obrigatório assistir a uma verdadeira tragédia com dois mil e quatrocentos anos escrita na Grécia Antiga, esse mítico espaço e tempo onde nasceram o teatro, a narrativa, a filosofia e a política.

Mesmo com este entusiasmo e curiosidade, não foi sem receio que comprei o bilhete – temia que fosse ou um texto poeirento, pesado, incompreensível envolto num cenário nebuloso, com actores de máscaras, ou uma tentativa excessivamente forçada para actualizar a peça para um português descuidado que desvirtuasse o texto ou que ridicularizasse a história.

Fotografia de Filipe Ferreira

Felizmente, Antígona cumpre sem hesitação o desafio a que se propôe – trazer o texto de Sófocles praticamente inalterado, ganhando liberdade no cenário, no guarda-roupa, na dança, na música, para fazer encaixar a peça perfeitamente em 2019. De facto, o que nos aproxima do palco sem cair no fosso da distância do tempo são, sem dúvida, os ténis brancos volumosos, o street wear e o street dance anacrónicos, ou a guitarra elétrica a fazer vibrar rock dançante. Esta música intensa soando entre um carrinho de whiskey e sofás de pele, enquanto um ditador de fato se impõe de cabeça erguida, leva-nos a universos tão actuais quanto Peaky Blinders. Também a instalação de vídeo no palco nos prende ao presente, prolongando o cenário para além das paredes e permitindo-nos ver aquilo que nunca poderíamos ou deveríamos testemunhar. Até o jogo de luzes traz um novo brilho à obra, causando literalmente mistério, temor e desconcerto na cena febril da premonição do adivinho.

Fotografia de Filipe Ferreira

Mas nada disto se tornaria possível sem um choque frontal e fatal com as palavras originais da Grécia Antiga. O texto, verdadeiramente intemporal, versa sobre problemas tão antigos quanto recentes, e o que mais resta deste espetáculo é a incredulidade da pertinência das temáticas iluminadas por Sófocles – os perigos da tirania, a violação dos direitos humanos, a força dos princípios morais, o valor dos costumes culturais, a corrupção embrenhada na política, os confrontos pai-filho e velho-novo, a mulher sempre menor que o homem e a agonia do fim da vida. Para conversar sobre tudo isto, vamos identificando durante a peça as personagens que são o arquétipo e a génese do que fomos conhecendo a vida toda, nos livros, nos filmes, nas séries. São elas que nos fazem sentir quase fisicamente o que a Arte nos tem contado durante estes dois mil e quatrocentos anos, através de interpretações magníficas e comoventes de raiva, desespero, indignação, culpa, paixão, ansiedade, frustração e coragem, que fazem jus ao peso e gravidade da obra. É surpreendente e simultaneamente sinistro que a história e a História sejam sempre as mesmas. Facilmente reconhecemos quem é hoje o ditador Creonte, a injustiçada Antígona ou a impotente Ismena.

Antígona relata-nos em discurso erudito, mas perceptível, a tragédia da nossa vida e da nossa sociedade sem solução, e é exactamente por isso que é relevante, provocadora, contemporânea e imperdível.

Texto de Beatriz Leal
A Beatriz teima em dizer que é de Tomar, mas nasceu e sempre viveu em Lisboa, exceptuando seis mágicos meses em Paris. Frequenta diariamente um hospital, mas pelas melhores razões. Num universo paralelo vai lendo e lendo livros, enquanto marca na agenda peças de teatro, festivais de música ou filmes no cinema, sem conta, peso, ou medida.

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