Ano Novo, vida…

por Rui Cruz,    30 Dezembro, 2018
Ano Novo, vida…
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Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.

Dia 30 de Dezembro de 2018, falta um dia para a passagem de ano. Como é que eu estou? De cama, com tosse, garganta a arranhar, nariz entupido e febre. Entrar no novo ano assim faz-me ter a certeza de que 2019 vai ser um óptimo ano. Para uma agência funerária, pelo menos.

Eu sei, eu sei… Sei que esta é a data em que essa coisa abstrata chamada esperança se torna quase palpável; sei que é neste dia que fazemos resoluções que vão tornar o próximo ano muito melhor, como ir ao ginásio ou não atirar coisas à TV sempre que aparece a Maya; sei que é nesta altura que perdoamos aquele amigo que um dia não nos convidou para o aniversário ou aquele ex que ainda insiste em respirar; sei que é nesta altura, à meia noite, que ligamos aos pais, a quem não atendemos o telefone durante o resto do ano e para quem já andamos a ver lares clandestinos, a chorar a dizer o quanto gostamos deles. Eu sei isto tudo. É uma data cheia de bons sentimentos, de humanidade e amizade e também uma datas onde mais se bebe e em que os dealers têm de contratar assistentes pessoais para conseguirem atender toda a gente.

Sim, porque só alguém muito bêbedo ou drogado é que consegue ter sentimentos positivos e esperança depois de passar por todos os “rituais” de passagem de ano. É que, como se já não bastassem todos os problemas que vão surgir no ano seguinte, escapar do nosso controlo e transformar esse ano num ano igual ou pior do que o anterior, ainda decidimos transformar a festa numa coisa com tanto protocolo que é impossível aquilo correr bem. É a roupa interior azul para dar sorte, é a peça de roupa nova, é bater tachos, é saltar de uma cadeira com uma nota no bolso, é brindar com champagne, é dar tiros para o ar depois de brindar com champagne (que é sempre uma óptima ideia porque se morrer alguém no fogo cruzado, pelo menos morre de forma chique), é o fogo de artifício, é abrir todas as portas e janelas, é sair e entrar com o pé direito, são as 12 passas… Man, nem para entrar na Maçonaria é preciso tanto (aliás, hoje em dia basta não teres muito daquilo a que se convencionou chamar de “carácter”, mas isso é para outro dia). É que a pressão é tanta para não esquecermos nenhum pormenor que há gente a entrar no novo ano já com um esgotamento.

Não é fácil manter a esperança e os bons sentimentos com isto, principalmente se fizermos a festa fora de casa. Sim, porque apesar de tudo, em casa ainda conseguimos controlar coisas como a música, excepto quando aquele amigo leva a namorada nova que ainda não sabe como as coisas funcionam e ela insiste que quer dançar porque “partyyyyy”, mas também isso costuma acabar rápido, normalmente quando ela “por engano” bebe aquele shot de absinto com mezcal que “era para mim” e passa as próximas 2 horas na casa de banho a conhecer melhor a sanita. Sou muito distraído. Wink Wink. Já num bar ou discoteca esquece, prepara-te para uma overdose de hits brasileiros de 1995 e, agora, para inclusão de funk, igualmente brasileiro. Porque faz sentido. Porque raio é que um ano que começa com um gaja a dizer “Mete com força e com talento/ Estou ofegante e você percebendo/ Bate e maltrata essa puta safada/ Quero jatada de leite na cara”, enquanto centenas de brancos sem ritmo natural tentam ser sensuais a roçarem-se um nos outros com a graciosidade de um gato a afiar as unhas no sofá, não há-de ser um ano espectacular?!

Mas tudo isto pouco interessa para o pessoal. Porque é a passagem de ano. É a promessa do novo e do diferente. E eu gostava muito de ser assim, sentir coisas boas, esperança e isso, na passagem de ano. Ser como a maioria. Parecem sempre mais divertidos, mesmo sabendo que não vão cumprir com as resoluções, que os desejos não se vão realizar e que cuecas azuis são horríveis, conseguem apreciar a festa. Gostava de conseguir fazer o mesmo, em vez de ser esta personagem rabugenta que está sempre “mimimimimimi”, o mundo está assim, a sociedade está assado, eu é que sou o messias e sei como devia ser tudo e tragam os Riscos de volta, etc, etc. Talvez use uma passa para esse desejo, antes de mandar um tiro. E ver se desta vez é mesmo para o ar. Desculpa, tio.

Bom ano novo!

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