Ano Agustina: ‘Deuses de Barro’ explora o antagonismo na vida rural

por Bernardo Crastes,    31 Julho, 2018
Ano Agustina: ‘Deuses de Barro’ explora o antagonismo na vida rural
Ilustração de Luísa Silva Gomes / CCA
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Este artigo faz parte do Ano Agustina, no âmbito do qual, ao longo de 2018, a Comunidade Cultura e Arte lançará, a cada mês, uma crítica a um livro da obra de Agustina Bessa-Luís, neste momento a ser reeditada pela editora Relógio d’Água.

Entre Agosto e Outubro de 1942, com a tenra idade de dezanove anos, Agustina Bessa-Luís escreveu Deuses de Barro, romance onde se perde por entre amarguras, compromissos, desgostos, indolências, raivas, sofrimentos; confinados à vida rural. No prefácio desta primeira edição do livro – escrito por Mónica Baldaque, filha da autora – é-nos transmitido um conselho de Agustina dado a escritores iniciantes: “nós devemos escrever sobre aquilo que conhecemos”. O comentário torna-se especialmente pertinente considerando que este é aquele que pode ser considerado o seu romance debutante, e comprova essa máxima – imaginamos que a trama que envolve Ana, José Maria, Maria José, Olívia, entre outras personagens, tenha sido cozinhada a partir do mundo rural que a viu crescer e que ela própria tenha visto desenrolar-se.

Olhando para cima no espectro etário, Agustina explora admiravelmente a dualidade transversal às personagens, relativa àquilo que dizem e àquilo que pensam; mas a barreira dessa dualidade é difusa, numa fusão do íntimo com aquilo que é transmitido, em relações normalmente antagónicas. É aquele pensamento malicioso que fica guardado, depurado em comentários coniventes e desenxabidos, na falsidade de intrigas alcoviteiras; é aquela vontade de expor sentimentos profundos, reprimidos num sofrimento conformado com a reputação.

É com estas realidades que se confronta Ana, presa ao seu amor de infância por José Maria, o fidalgo cujo regresso anseia. Recordando o passado durante o lavor agrícola no início da história, contextualiza-se a questão: as brincadeiras infantis com José Maria e a irmã Maria José – por quem nutre uma raiva desmedida – no mosteiro de família dos pequenos fidalgos; as romarias platónicas de Agosto e o desgosto da indiferença de José Maria, que eventualmente se deixa convencer pela Ana de «risadas sadias, vasto reportório de quadras picantes», que então «achou que valia a pena; achou que valia uma paixoneta, a maçada dumas frases de erudito ou namorado». Seguem-se cortejos de sonetos foleiros e «beijos receosos», num amor simplório que culmina em promessas do regresso ao mosteiro. Seis anos se passaram.

Esta atitude denegridora das personagens parte da narração de Agustina, que as reduz com palavras duras, mais ainda do que o ambiente quase hostil em que elas se movem. Ana é reconhecida por José Maria pelo seu «aspecto contraditório, espanejado, ensosso, fatal, ingénuo». «Tão bonito, o menino!», exclama Ana, apenas para Agustina simplesmente escrever a seguir «Mas não era.» Esta atitude crítica da narradora parece querer instigar reacções, incendiar opiniões; resultando em que as atitudes intempestivas e melodramáticas que vão sendo tomadas pelas personagens surjam de forma natural, como uma espécie de revolta. Essencialmente, o antagonismo é uma peça-chave do romance, quer na história em si, como na escrita, resultando numa leitura também ela antagónica: cativante e amarga.

Apesar da obra se focar na esfera rural, apresenta também laivos de uma crítica social mais abrangente. O facto de ter sido escrita em 1942 – a meio da II Guerra Mundial – torna o contexto bélico algo inescapável. Surgindo como pano de fundo, a guerra surge nas palavras de José Maria, um pacifista que se opõe veemente à mesma e clama pela paz; tornando-se até especialmente mordaz o arco narrativo da personagem, que acaba por se alistar como voluntário na guerra. Maria José torna-se o veículo para fazer uma alusão à situação neutral de Portugal no conflito, ao referir «a irritante escassez da neutralidade» quando se vê obrigada a mudar de marca de cigarros. Fora do espectro da guerra, temos ainda a personagem do abade, determinante para uma mudança de atitude por parte de José Maria, que espelha um clero desmotivado.

A escrita de Agustina em Deuses de Barro é rica de uma forma quase académica. Tem exemplos perfeitos de recursos estilísticos, frases como «E aspirou na placidez da tarde morna um aroma subtil, um tanto acre, de liberdade, de desengano também», para além das antíteses recorrentes e já largamente mencionadas neste texto. Onomatopeias vão pontuando as descrições extensivas da vida campestre, carregadas de arcaísmos belos que musicalizam o texto e demonstram uma preocupação redobrada com a forma. Aprendemos muito acerca de Agustina aqui, denotando entusiasmo na sua escrita, uma narração intrometida que privilegia a análise por oposição à inferência por parte do leitor; análise essa que, para além de belamente escrita, espelha bem aquilo que imaginamos ser a realidade psicossocial rural dos idos anos 40.

Deuses de Barro é uma obra que tem força no bucolismo e nos conflitos internos das suas personagens, apenas perdendo fôlego quando as vemos presas numa modorra conformista, constritas pelos deuses de barro criados por si. É nos antagonismos que ela se eleva, entusiasmando e cativando através dos mesmos. Inédita até 2017, marca um início auspicioso que se afigura como o canteiro onde Agustina plantou a semente temática de obras posteriores e onde se deslindam já traços da sua escrita tão marcante.

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