Ano Agustina: ‘Dentes de Rato’, uma viagem pela infância de Agustina Bessa-Luís

por Sofia Trovisco,    4 Janeiro, 2019
Ano Agustina: ‘Dentes de Rato’, uma viagem pela infância de Agustina Bessa-Luís
Ilustração de Luísa Silva Gomes
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Este artigo faz parte do Ano Agustina, no âmbito do qual, ao longo de 2018, a Comunidade Cultura e Arte lançará, a cada mês, uma crítica a um livro da obra de Agustina Bessa-Luís, neste momento a ser reeditada pela editora Relógio d’Água.

Dentes de Rato é um conto infantil da autoria de Agustina Bessa-Luís, uma nota autobiográfica ficcional, cuja escrita simples e fluida viaja através da narrativa de histórias, lugares e pessoas que marcam o universo infantil de Lourença. Um conto que evidencia os traços mais marcantes da infância da autora, os quais são explorados em inúmeras obras literárias de Agustina – as inúmeras mudanças de casa e de localidade, devido ao emprego do pai; a ligação íntima com o campo e com o norte de Portugal, lugares esses que cultivaram para sempre o seu imaginário; e a convivência com os costumes e tradições do século XX, fomentando o seu espírito crítico face ao papel da mulher na sociedade e o seu gosto pela moda.

Lourença – uma menina de seis anos e a mais nova de quatro irmãos – é conhecida no seio familiar por Dentes de Rato, por ‘uma mania que ninguém podia explicar’: mordia todos os frutos que estavam na fruteira, ficavam com ‘duas dentadinhas já secas e onde a pele mirrara’, denunciando assim a sua presença. A atitude de Lourença escandalizava todos os familiares, causando-lhes incómodo e incompreensão, com o seu olhar quieto e sério; Lourença padecia dos mesmos sintomas, para si ‘a gente grande não era muito inteligente’ e ‘não sabia diferenciar o que acontece do que não acontece’. ‘Apetecia-lhe morder-lhes e fugir depressa’, sempre que os adultos lhe passavam a mão benevolente na cabeça, ‘não compreendia como os adultos tratavam a gente pequena daquela maneira’, não gostava de aprender ‘a fazer habilidades como os cãezinhos’, nem via interesse em aprender ‘coisas aborrecidas que teria de esquecer com rapidez’. A sua sabedoria ensinou-lhe que ‘ninguém ensina tão bem como a necessidade; aquilo que aprendemos antes do tempo não se aprende verdadeiramente, só se acumula na cabeça.’, além disso ‘o coração não toma parte’.

Lourença não mantinha uma relação de proximidade com ninguém do seu núcleo familiar. Era verdadeiramente distante dos três irmãos, apesar de gostar muito deles – ‘É muito difícil ser-se amigo íntimo de um irmão ou de uma irmã. Gosta-se deles, mas não se tratam com a confiança que às vezes um estranho nos merece.’ Artur, o irmão mais velho e uma figura misteriosa, ria-se da sabedoria de Lourença, a ponto de ela ‘julgar que se tratava de algo de feio’. Felizmente Lourença racionalizava que ‘as pessoas que nos conhecem de perto não são capazes de nos levar a sério’; Falco, um miúdo débil ‘a quem aconteciam todos os desastres possíveis’, fazia asneiras e gostava de discursos de terror, principalmente ‘quando os irmãos comem coisas saborosas’; e Marta, muito mais velha, parecia-lhe uma senhora, e ‘ser uma senhora é a coisa mais aborrecida que há’, nem a considerando irmã.

A mãe tratava os filhos de forma diferente e chorava muito, o que aborrecia Lourença, que ‘achava uma perda de tempo, porque as coisas não se arranjam com o choro’. O comportamento de Lourença era a sua maior fonte de frustração, ralhava-lhe imenso, não a compreendia, adotava uma posição condescendente, afinal de contas ‘as crianças são assim, como o Entrudo, algo disparatadas’.

O pai era um homem de negócios muito ocupado e de sorriso divertido – uma espécie de figurante, no que diz respeito às lides do quotidiano -, o que exigia à família trocar de terra pontualmente, mudando assim o enredo e o palco da imaginação de Lourença. O pai era uma pessoa de outros tempos, com conversas desinteressantes e que raramente se prestava a manifestações de afeto; lá lhe dava um beijo muito pontualmente, ‘sempre com respeito e severidade’. Contribuíam de igual modo, para o imaginário de Lourença, as histórias de caçados e dos perigos de África que acompanhavam as raras aparições do Tio António – aos olhos de Lourença, ele próprio um perigo.

Apesar da tenra idade, Lourença gostava de assistir às aulas de Falco, que passava os invernos em casa, ‘com febre e a comer batatas fritas’. Ganhou habilidades de leitura muito cedo e, sem que ninguém fizesse caso, começou a ler os jornais e os folhetins. Ouvia a mãe a discutir apaixonadamente sobre os enredos dos folhetins, soava-lhe a conversas tolas e sem sentido e aprendeu a calar-se a respeito dessas leituras. Fingia ter agrado pelas leituras que Dona Guiomar, a professora roliça e baixinha de Falco, lhe trazia, ‘simplesmente uma maçada e só as crianças atrasadas podiam gostar daquilo’.

Quando teve idade de frequentar as ‘primeiras letras’, gerou tumulto em seu redor. Sabia muito e nunca tinha feito exame algum, e as professoras ‘olhavam para ela com aborrecimento, preferiam que ‘fosse ignorante e começasse pelo início’. Lourença optava por passar despercebida no tempo de aulas, sofria com a possibilidade de alguém descobrir a sua alcunha, é que ‘uma ofensa com imaginação é carinho; mas com troça é mais do que uma ofensa, porque se serve daquela espécie de amor que há na imaginação para ferir’. Lourença achava todas estas altercações ‘só um contratempo’.

Desde muito cedo, aprendeu a refugiar-se no íntimo da sua imaginação, nada lhe dava mais prazer do que ‘comer maçãs, fechar os olhos e deitar-se na cama’ – a verdadeira rampa de lançamento para os seus sonhos -, assim como viajar pelas sensações que os cheiros do interior da casa lhe traziam – ‘o cheiro da canela em cima do creme quente; o cheiro da cera no chão e da água em que se misturou o sabonete’. Partilhava o quarto com Marta, mas isso não era impedimento para ir ‘mais longe nos sonhos e na imaginação.’ Por vezes, a cama transformava-se numa jangada e navegava pelos sete mares, banhando-se em aventuras de índios e donzelas. Noutras horas, ‘a famosa cama era como um palco e em que os travesseiros eram personagens tão cheias de carácter como de lã de ovelha’ e Lourença vestia-se de ‘modas maravilhosas e de saltos alto’, as vestimentas preferidas das peripécias da sua imaginação.

A Casa de Cavaleiros – propriedade também referenciada no conto O Soldado Romano – e o monte da Cividade seriam testemunhas do que a mãe chamaria ‘quase uma tragédia’. Adquirida pelo pai, não por necessidade ou desejo pessoal, apenas pela eventualidade de ganhar dinheiro com a mesma, acabaria efetivamente por acontecer. A Casa estava aos cuidados de dois caseiros e do seu filho Artaxerxes – ‘o nome arrevesado punha-o doido, e tornou-se, além disso muito mau. Xerxes e Falco tornaram-se companheiros de travessuras, o que causava ciúmes a Lourença, não entendia porque a consideravam um empecilho. Um dia, uma chuva acidental de chumbos na cara de Falco determinaria o fim da amizade entre Falco e Xerxes e a fuga para paradeiro incerto desta personagem irreverente. Também pela Casa de Cavaleiros ficou perdida a memória de Dentes de Rato; no final do Verão, os dentes finos e pontiagudos deram lugar a dentes ‘novos, mais redondos e fortes’. Esta mudança tornou o seu coração mais valente e já não se preocupava com as injúrias dos irmãos. Lourença despedia-se dos bibes de criança e vislumbrava o início da adolescência que trazia consigo ‘birras que lhe davam para não comer’ e o fim da sua sensatez. Lourença fazia nove anos, ‘uma idade em que ninguém reparava’ e que em nada mudava a sua vida; uma pomba pousou no peitoril e sentiu que o ‘o mundo inteiro esperava por ela, e os mares todos, com as suas tempestades, podiam ficar calmos porque ela assim queria que fosse.

É possível encontrar, de novo, Lourença e o início do seu amor pela escrita na obra Vento, Areia e Amoras Bravas; Agustina presenteia-nos, assim, com a oportunidade de a conhecer pelas palavras da própria.

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