Ano Agustina: ‘A Sibila’, uma proposta de humanidade

por Tiago Mendes,    27 Fevereiro, 2018
Ano Agustina: ‘A Sibila’, uma proposta de humanidade
Ilustração de Luisa Silva Gomes / CCA
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Este artigo faz parte do Ano Agustina, no âmbito do qual, ao longo de 2018, a Comunidade Cultura e Arte lançará, a cada mês, uma crítica a um livro da obra de Agustina Bessa-Luís, neste momento a ser reeditada pela editora Relógio d’Água.

Um dos factores mais importantes na constituição e manutenção de uma ideia de nação são os seus textos, que não precisam de estar necessariamente escritos e publicados – mas viver entre nós, reproduzirem-se nas nossas conversas quotidianas, moldarem o imaginário colectivo, serem ponto de partida e chegada, régua a partir do qual se mede o passado e o futuro – com a flexibilidade que os bons textos possuem, para este ou para aquele tempo. Encontramo-los na própria língua – como texto aberto, altamente personalizável, na semântica e gramática que expressa e altera a nossa compreensão do mundo. Nos provérbios, nos mitos, nos feitos históricos. Também nas canções que ouvimos, nos livros que lemos. Nos livros que nos querem obrigar a ler – ou, para uma alargada franja, nos resumos e tópicos essenciais desses livros.

Houve um tempo em que A Sibila foi de leitura obrigatória para os alunos do secundário. Esse é o maior dos estatutos legais para um texto literário – fazer parte de um currículo. Definir-se que a formação obrigatória de um povo deve fazer-se a partir daí – que não é desejável morarmos onde moramos, sermos quem somos, sem que tenhamos lido aquelas linhas, ou pelo menos falado sobre elas. É um lugar estranho, para um livro. Apresentado anualmente a dezenas de milhares de adolescentes; exposto ao desinteresse, à curiosidade, à frustração, à avaliação, ao deleite. Analisado e escrutinado – segundo as devidas interpretações definidas, as respostas que devemos dar para ter os vinte valores -, incensado, gozado, carregado, lido, comprado. Tudo isto em simultâneo.

Mas ocorre-me destacar uma dimensão: protegido do esquecimento. Um texto que se encontre no currículo escolar encontra-se a salvo de ser esquecido. Quando uma obra desce do pódio, para dar lugar a outra, caminha para tempos incertos. Menos olhos vão passar por ela. É uma posição menos comprometida, e pode até ser mais fértil; mas é uma posição arriscada.

Não fiz nenhum estudo estatístico, não tenho amostras significantes. Mas entre os meus amigos leitores, aqueles que com regularidade se entregam às histórias para ali viverem e se transformarem ao longo das páginas, alguns nunca ouviram falar de Agustina Bessa-Luís. Em declarações publicadas pela Sábado há exactamente um ano, no início de um processo que culminaria com a mudança da obra para a Relógio d’Água, o grupo editorial Babel (então com os direitos de publicação) afirmava que actualmente Agustina é “uma escritora que não vende por aí além”. A Sibila, a sua obra mais reconhecida, vendia aproximadamente 500 exemplares por ano. Livros comprados e número efectivo de leitores não formam uma relação linear, nem pode ser exacta qualquer extrapolação. Mas, como sugestão, é expressão de qualquer coisa.

Ao ler A Sibila – ao ler pela primeira vez Agustina Bessa-Luís – apercebi-me da tristeza que seria perdermos este património vivo. Fui-me apercebendo, em vertigem, no desenrolar dos primeiros capítulos, do tesouro que continha. Sessenta e cinco anos decorridos desde a sua publicação, contém largas passagens que parecem pintadas de fresco, com um discernimento que diríamos contemporâneo, um distanciamento crítico sobre a existência – recorrendo à ironia na dose certa, protegendo o texto de um cinismo excessivo que o teria tornado menos deslumbrante. Fá-lo por meio de personagens complexas, analisadas emocionalmente ao detalhe, por meio de histórias cruzadas, sentimentos contraditórios, personalidades vincadas e descrições poéticas.

Acompanhamos a história de uma família, com particular foco em Quina. Conhecemos os proprietários da Casa da Vessada, com as suas histórias de vida, recordadas aos solavancos por meio de técnicas narrativas que se assemelham a mnemónica espontânea. Conhecemos o dinâmico equilíbrio entre os estratos sociais, a clivagem de poderes e papéis entre homens e mulheres, a procura dos confortos adequados às expectativas. Num ambiente rural, muito cru, em que a família e a propriedade se assumem como conceitos absolutamente incontornáveis, conhecemos as vidas de uma série de personagens que se vão ligando a Quina e aos seus familiares, e determinando aos poucos o destino destes.

Na escrita de Agustina, são sucessivas as tentativas de compreensão do que não pode ser compreendido; como se a autora não desistisse de mapear uma personalidade, uma história mental, espalmar no papel os anseios e as alegrias, as expectativas, os medos, as paixões, a sinceridade e o egoísmo. Somos demasiado complexos e contraditórios para sermos descritos por palavras – mas Agustina tenta-o, guerrilha contra as limitações da linguagem, por vezes fazendo incursões por frases longas e difíceis, não lhes querendo largar o fio; servindo-se dessa densidade para espelhar a complexidade do humano.

“Páteo rural”, SILVA PORTO (1850-1893), óleo s/ madeira

E que humana, é esta escrita, tão ciente da cultura em que nos movemos, dos padrões a que nos agarramos mais ou menos involuntariamente. A vida passa rápido, para a sibila, que acumula, numa demanda calculista pela acumulação do património. A propriedade como sinal de uma existência relevante pela face desta terra – e a sua relação com o místico, com o que não se pode agarrar. Esta tensão movimenta a trama subliminar da obra: no coração, uma personagem que se assume como gestora de punho firme, mas que se concede amolecer diante de um outro fenómeno psicológico.

A aldeia portuguesa, na proximidade do Douro, desafia o leitor. É rara a página em que conhecemos todos os vocábulos, em que não somos confundidos por uma ou outra expressão que nos escapa. Daí que o cenário de A Sibila seja tão absorvente: somos estrangeiros, quer em termos geográficos, quer temporais, quer culturais. Que país é este, que é o nosso, que tínhamos de ler e agora já não temos? Em que medida estas propostas, estas estranhas reflexões – divertidas e dolorosas, em diferentes passagens – se podem aplicar a nós? São muitas as questões que A Sibila nos levanta: nos episódios do quotidiano das personagens ou nos devaneios livres da narração de Agustina, a nossa existência e propósito é colocado em causa. Somos sensíveis a isto? Importa sê-lo.

Felizmente não me cabe escolher quais os textos obrigatórios para esta ou para aquela idade, para o país ou para a região x, mas é com sentido de mobilização que apelo a que se leia A Sibila, e a que se descubra a obra de Agustina Bessa-Luís. Somos mais humanos quando mastigamos a nossa mediocridade, quando revolvemos a nossa mesquinhez, quando atentamos nos odores que entram pela janela nas tardes de verão, quando contemplamos – em êxtase incompreendido – o que somos e o que poderemos ser.

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