“Anne Frank – Vidas Paralelas”: um documentário para o horror não voltar

por Ana Monteiro Fernandes,    28 Setembro, 2020
“Anne Frank – Vidas Paralelas”: um documentário para o horror não voltar
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‘#AnneFrank — Vidas Paralelas’ é o novo documentário sobre Anne Frank que estreou nos cinemas portugueses dia 24 de Setembro e que, paralelamente, irá estar disponível na Netflix em Novembro. Com realização de Sabina Fedeli e Anna Migotto e produzido, também, pela 3D Produzioni e a Nexo Digital em colaboração com a Anne Frank Fonds Basel e a Sky Arte, a mensagem da geração do ‘Shoah’ é bastante clara  — quer passar o testemunho aos mais jovens e conta com as novas gerações para a história não se voltar repetir.

As frases mais recorrentes, actualmente, são: “a história está sempre a repetir-se”, ou, “não aprendemos nada com a história.” De facto, não é fácil encontrar-se uma resposta cabal para se justificar o porquê da humanidade sentir que, de facto, não aprende com os seus próprios erros do passado. Isto levanta outra pergunta. A informação, por si só, chega para aprendermos alguma coisa? Ou melhor, a informação, aquela que se capta só nos livros, chega, por si só, para se criar empatia e entender-se o ‘pathos’ do outro alheio que, no fundo, não se deixa de encarar como algo ou alguém já muito distante? Claro que o mundo já passou por várias transformações e, ideologicamente, há, pelo menos, a ténue esperança que faz pensar que, efectivamente, os organismos criados no pós-guerra e o tudo que já aprendemos sobre humanismo, tolerância e igualdade prevalecerá e ajudará a combater todo o tipo de barbárie extremista que não tenha em vista o outro. O mesmo tipo de barbárie que encontrou uma nova voz recentemente. Mas também é verdade que seria impensável há, pelo menos, 15 anos ou pouco mais, dizer-se que a extrema direita voltaria a ter poiso no parlamento alemão, pela primeira vez após 1945, com a AfD; que, de alguma forma, o populismo voltaria com todas as manifestações que vimos e que regressaríamos a discussões que pensávamos resolvidas. A primeira fase do desengano está-se a dar — o progresso não é contínuo e crescente, vai conhecendo várias oscilações. As pessoas relativizam o que não viveram, o que não viram, e quando as dificuldades crescem no dia-a-dia, aí já não importa o passado, porque passamos a ser as consequências das nossas circunstâncias do presente. É por isso que, a acreditar-se na afirmação, sim, a história é capaz de se repetir no meio de uma evolução aparente.

O documentário ‘#AnneFrank – Vidas Paralelas’ é, por isso mesmo, um documentário mais do que essencial porque não cai no cliché de ser, apenas, mais um documentário informacional sobre Anne Frank — no mundo contemporâneo encontrar informação não é difícil. Procura, antes de mais, passar uma espécie de legado aos mais jovens, os netos ou bisnetos da geração que nasceu em finais dos anos 20 e que, agora, tem a mesma idade que Anne Frank teria se fosse viva – 91 anos. Se pensarmos que a geração adolescente e jovem que viveu o holocausto (‘Shoah’) na primeira mão já está, ela própria, a chegar a uma idade muito avançada e que perecerá num dia já não muito distante, esta passagem de testemunho e a vontade dos mais jovens em tentarem perceber algo que, de facto, não viveram, ganha um simbolismo ainda maior. Daqui a pouco o mundo deixará de ter quem lhe conte na primeira pessoa o pior crime da modernidade cometido no seio das sociedades evoluídas, como etnocentricamente a Europa gosta de achar que é. Depois, só ouviremos por terceiras, quartas ou quintas pessoas. Como lançar, então (numa sociedade cansada e absorta nos seus próprios problemas, em que o excesso e pouca credibilidade da informação torna-a perigosamente banal) o alerta de que, de facto, este crime pode voltar a acontecer? Como chamar a atenção para a violência, quando as imagens de violência, só por si, estão elas próprias também banalizadas pelo fácil recurso actual às imagens e pelo facto destas se encontrarem em todos os lugares? Quando chegamos a nossa casa à hora do almoço e é, estrategicamente, a essa hora, que ouvimos os comentários dos programas da manhã aos crimes mais hediondos do dia ou da semana havendo, dessa forma, uma saturação?

A solução encontrada por este documentário foi inverter o paradigma habitual e dar espaço para que gerações se encontrassem  — neste caso, permitir um diálogo directo entre a última geração que viveu o holocausto e a geração Millennial e a geração Z. Isto é, estamos a falar de uma passagem de testemunho directo entre avós e netos. E, claro, independentemente das diferenças geracionais, tentar encontrar o elo que nos faz ser, simplesmente, humanos e não, apenas, um mero reflexo dos nossos tempos. O ‘phatos’ e a compreensão com o outro dá-se, precisamente, com a tentativa desse elo; com o contar na primeira pessoa e em relação com a contemporaneidade; com a sensação de que, de facto, nos está a ser passado um testemunho; com os memoriais, os museus e os centros de documentação que foram erguidos dos locais de tortura e campos de concentração da II Guerra. Torna-se interessante, dessa forma, ver como os netos das idosas contemporâneas de Anne Frank que, também, experienciaram as atrocidades dos guetos judaicos e campos de concentração, lidam com o facto da sua família carregar uma história, sentirem ou pressentirem o seu peso sem, no entanto, ser algo já palpável ou dentro do domínio da sua total compreensão do sucedido. Sob este ponto de vista, é curiosa a decisão de um neto que, no documentário, mostra a tatuagem, no braço, do número de identificação da sua avó, enquanto estava no campo de concentração. É possível lembrar e estabelecer um paralelismo com o que Zizek diz no seu recente livro, ‘A pandemia que abalou o mundo’: no meio de uma crise ou ameaça, lida-se melhor com o medo e há uma maior coragem quando há uma espécie de marca, algo visível que se possa identificar. E remata, utilizando, justamente, a questão dos judeus e do ódio nazi, “tenhamos presente que, na Alemanha nazi, o antissemitismo era mais forte nos locais onde o número de judeus era mínimo  — a sua invisibilidade fazia deles fantasmas aterradores.” Nunca é demais, portanto, relembrar a importância que os memoriais pós-guerra têm.

Tendo em vista essa mesma ligação entre gerações, a base do documentário parte, precisamente, pela visita de uma jovem aos locais por onde Anne Frank passou como pelos locais que marcaram o horror nazi e o calvário judeu. A viagem parte da sua necessidade de conhecer e entender melhor a adolescente judia, a ligação que nutre por ela, como pela sua geração e o que esta penou. Ao mesmo tempo que trilha os caminhos de Anne Frank, vai partilhando pequenas mensagens e posts nas redes sociais, em que aproveita para, de forma retórica, questionar directamente Anne Frank sobre os horrores que viveu e sobre a sua vida. Estamos perante um ponto chave, nada melhor do que o diário de Anne Frank para saltar gerações e falar de igual para igual com os adolescentes passado todo este tempo  — isto porque há o pendor histórico e da época, bastante bem escrito por uma menina dos 13 aos 15 anos, mas há mais do que isso. Há, também, a Anne adolescente que quer crescer e ser mais, a Anne que não é, apenas, um mero reflexo do seu contexto histórico. É precisamente aí que o elo e a comunhão entre gerações se dá e se torna possível. E é precisamente por isso que um diário acaba, sempre, por ser mágico.

Enquanto Helen Mirren lê excertos do diário, sentada na própria secretária do quarto que Anne partilhou com o dentista Fritz Pfeffer no anexo, estabelece-se um paralelismo com a viajem que a jovem do documentário inicia, primeiro, em Bergen-Belsen — o local onde Anne morreu, tal como Margot, a sua irmã, com Tifo, a doença que na altura assolava o campo de concentração de forma epidémica. A dimensão epidémica da doença começou com a deportação em massa dos judeus de Auschwitz para Bergen-Belsen. Tal como um historiador relembra no documentário, o Tifo era um aliado que mantinha as funções de uma câmara de gás, sem os nazis terem de manchar as suas mãos. Tanto Anne como a sua irmã foram colocadas em valas comuns, como era costume Nazi, e não se sabe ao certo o local específico onde permanecem os seus restos mortais. Há, no entanto, o memorial e uma lápide negra erguida, em sua honra e em honra de sua irmã, de forma a assinalar, simbolicamente, o seu local de eterno descanso. Mas antes de Bergen-Belson, onde de facto a família Frank se separou, Anne já havia passado por Auschwitz, onde a seus pais permaneceram. Otto, no entanto, foi o único que sobreviveu. Primeiro viria a falecer a sua mulher, em Auschwitz, depois Margot e, por fim, Anne em Bergen-Belsen. Cerca de 230.000 jovens e crianças passaram pelo campo da morte. Quando se deu a libertação de Auschwitz, destas 230.000 crianças, apenas 7000 se salvaram. Outro ponto interessante é que os guetos judaicos, mais frequentes em alguma Europa Central, a este e leste, por uma maior concentração da comunidade judaica, foram também lembrados. Especificamente, recordou-se o gueto de Terezín na República Checa. Na verdade, quando a comunidade judaica não era suficiente, numa determinada localidade ou país, para ser guetizada, a força Nazi tinha de adoptar uma outra estratégia — contava com a ajuda da população para a denúncia e localização de possíveis pessoas judaicas, para se proceder à rusga directa e à consequente deportação para um campo de concentração ou ‘campos trânsito’ como Westerbrok, nos Países Baixos, onde se decidia quem estaria para apto para trabalhar ou não. Foi o que aconteceu com Anne Frank. Após a sua família ter sido descoberta no anexo, foi enviada para Westerbork; posteriormente para Auschwitz e, depois, somente Anne e Margot seguiram para Bergen-Belsen — o seu destino final.

É após a jovem viajante ter passado por todos os locais chave para entender a vida de Anne Frank e a monstruosidade do foi o ‘Shoah’, que chega, finalmente, ao anexo, ao quarto da adolescente judia, onde ainda estão dispostos na parede os posters das actrizes, dos cantores e das celebridades que Anne adorava. Estão lá as fotografias e recortes de actrizes como Greta Garbo, por exemplo, de membros da família real holandesa como, também, um recorte da actual Rainha de Inglaterra, Isabel II, na altura também uma adolescente. Um pormenor interessante, e que está descrito no diário, é que Anne se interessava imenso por genealogia e passava imenso tempo a realizar árvores genealógicas — daí o seu interesse pelo estudo das monarquias. Esse era um hobbie de que gostava, mas o seu verdadeiro interesse era a cultura clássica e o estudo da mitologia grega e romana. Daí as suas quezílias com Pfeffer na partilha da secretária do pequeno quarto — o médico dentista não percebia como esses estudos poderiam vir a ser importantes. O seu sonho passava, essencialmente, por poder estudar história de arte e, claro, poder ser uma grande escritora. Mas é quando a jovem viajante chega ao quarto, o local onde o diário foi escrito, e Helen Mirren se afasta ao mesmo tempo, dando-lhe assim espaço e a vez naquele local, que percebemos que este documentário faz o pedido mais importante de todos. A geração de Annelies Marie Frank, a mais sábia porque assistiu às ascensão e ao declínio das ditaduras, está-nos a dizer, diretamente, que agora é connosco, os seus netos e bisnetos. Pede-nos para continuarmos o seu legado, mas não de forma passadista. Não quer que fiquemos eternamente com pena, não quer que a choremos eternamente. Pede aos mais jovens para continuar com o seu legado por nós, para sabermos dizer não à barbárie quando esta se aproxima. Trazendo, de forma inteligente, a questão do holocausto para as questões do presente, é relembrada a subida do neo-nazismo na Alemanha, a questão dos refugiados e as provações pelas quais as crianças e jovens têm de passar nos actuais centros que lhes são destinados, tal como na Grécia, ou nos palcos de guerra tal como na Síria.

A nível técnico, o documentário alicerça-se em vários paralelismos interessantes. Há os relatos de cinco judias contemporâneas de Anne Frank que sobreviveram aos campos de concentração e guetos; o confronto desses relatos com as impressões dos seus netos; a recordação da história de Anne Frank fazendo uso de fotos de arquivo da sua família; mas sem esquecer a utilização de vídeos de arquivo, que levantam o véu do que foi realmente o holocausto e o estado subnutrido e deplorável dos judeus nos campos de concentração. Como se, por si só, isto não fosse suficiente, estabelece-se, igualmente, a ponte com a visita aos principais memoriais do holocausto tal como a algumas sinagogas, como aos locais por onde Anne Frank passou e viveu a sua tortura. O paralelismo com a jovem do documentário e o seu roteiro de viagem é, por isso, extremamente importante para entendermos o quão fulcrais e necessários todos estes locais são, para entendermos a razão pela qual a barbárie jamais deve ser repetida. Outro ponto interessante a nível da realização é a utilização dinâmica de panorâmicas que giram, quase por completo, em torno do seu próprio eixo como a escolha dos picados e contra-picados quase gerais, para mexer, em simultâneo, com a nossa concepção da majestade dos locais visitados como pela nossa impotência ou estado de inferioridade face ao que aconteceu.

As situações estão longe de ser iguais. Sim, estivemos ou ainda estamos numa situação de confinamento, mas não há uma conspiração de morte arquitectada contra a nossa vida, especificamente, e podemos estar à vontade no nosso lar sem o medo de alguém nos descobrir. Mas face à história recente, e quando há mesmo jovens a defender, também, ideias obscenas que pensávamos findadas, é impossível não sentir uma ressonância quando pensamos que esta foi uma geração que viveu, diariamente, com a sensação de ausência de futuro. Basta pensar que, pela primeira vez, após a II Guerra Mundial e após o 25 de Abril, no caso português, a progressão do estilo de vida já não está a ser ascendente para as novas gerações. Há um declínio económico face à geração dos pais. Há, igualmente, um declínio ético e moral generalizado que faz relativizar, na mente de muitos, o facto de um partido que tem assento na assembleia portuguesa ponderar propor a remoção dos ovários a uma mulher que aborte, ou, então, o facto de um candidato à presidência brincar, estrategicamente, com a saudação nazi numa manifestação. Seria impensável há um par de anos dizer-se que, mesmo na Alemanha, a extrema-direita também está a conseguir a tirar dividendos das teorias da conspiração contra as máscaras e medidas de prevenção da pandemia, como se viu na manifestação em frente ao parlamento alemão. Portanto, há esta passagem de testemunho necessária dos mais velhos e há que aceitar e aceder: as novas gerações têm de saber identificar a barbárie e dizer-lhe não! A ‘banalidade do mal’ começa sem a sabermos identificar. Esse é o risco que corremos contemporaneamente, e é esse o risco que temos de saber como travar, na hora da nossa decisão daquilo que queremos para o mundo.

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