André C. Santos filma os Wet Bed Gang: ‘Sente-se um fervilhar de vida dentro deles’

por Tiago Mendes,    2 Maio, 2017
André C. Santos filma os Wet Bed Gang: ‘Sente-se um fervilhar de vida dentro deles’
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“Vai partir o autocarro para Vialonga”, anuncia Rossi, na última cena do documentário. Nesse autocarro vamos nós. Embarcamos numa viagem ritmada, intensa e emotiva ao coração de uma comunidade que luta pela vida e a celebra. Somos testemunhas de um ambiente pulsante, por meio das diversas modulações da câmara, das palavras entusiasmadas, da partilha de memórias, e das relações humanas que têm a rua por lugar de encontro privilegiado. Sentimo-nos parte da família, e comungamos de um espírito de missão que se serve da música e nela culmina.

Pôr a minha vida no teu ouvido” é um documentário valioso sobre os Wet Bed Gang, grupo de hip hop da Vialonga que tem vindo a criar burburinho e a angariar camadas crescentes de público. A morte do fundador do movimento, em 2014, marca a história dos Wet Bed Gang. O projeto é hoje uma espécie de tributo em constante desenvolvimento; embebido de um espírito de missão que quer honrar a vida e o legado de Rossi, o colectivo marca a diferença por meio da sua intensa batida, e da expressão suada daquilo em que acredita.

O trabalho de realização é de André C. Santos, cineasta português formado na ETIC, e que já levou diversos vídeoclips a festivais como o Arouca Film Festival e o Curtas Vila de Conde. Colaborou de perto com Vhils, na produção de vídeos para o Vhils Studio, Soliddogma e galeria Underdogs, e tem trabalho desenvolvido no campo da publicidade. Este projecto, “Pôr a minha vida no teu ouvido”, constitui um passo ambicioso na sua carreira; nasce de uma vaga ideia, e consolida-se num trabalho envolvente e emotivo. Não são só os Wet Bed Gang que passamos a conhecer por meio desta curta-metragem de meia-hora; a forma como é contada, a linguagem visual e narrativa a que recorre, é também um cartão de apresentação de André, que faz questão de abordar a realidade por meio de uma apurada lente artística.

Consegue-o nos momentos mais íntimos, filmados na própria casa dos elementos da banda; nos ensaios ou nos concertos, em que cada um está a dar tudo de si; nas filmagens poéticas das ruas e fachadas da Vialonga, ao som dos flutuantes sons do grupo; e nos testemunhos emotivos que recolhe, da experiência de pessoas entusiasmadas pela imprevisibilidade crescente do sucesso da sua carreira. Latente, a presença de Rossi; já não de forma física, mas nos graffitis dos muros da cidade, nas inspiradas sequências de planos em diversas cenas do filme. O fundador ainda mora na fundação.

Estivemos à conversa com o André C. Santos. Falámos do novo documentário, cuja estreia na internet está para breve, e que pode ser visto em exibições pontuais anunciadas antecipadamente na página do filme. Abordámos o processo de aproximação à banda, o método de filmagem, e os planos para o futuro. Pelo meio, percebemos a vontade que motivou o projecto: há um fervilhar de vida dentro dos Wet Bed Gang a que não ficamos indiferentes. O autocarro de Vialonga já partiu, e vem pejado de muito talento.

De onde nasce a ideia do projecto? Já conhecias o trabalho dos Wet Bed Gang?

Eu já era amigo deles todos há bastante tempo. E também do fundador do grupo, o Rossi. Quando ele faleceu, há quase três anos, falei com o irmão dele, que é o actual líder, o Fabio (Brizzy). Falámos na hipótese de homenagear o Rossi de uma forma qualquer, através do vídeo. Só que a linguagem do vídeo nunca foi muito bem definida. Havia a hipótese de se fazer um vídeoclip. Uns rapazes em Vialonga juntaram-se e fizeram uma música bem extensa, em jeito de homenagem ao Rossi, e pensámos que o vídeo podia ser para esse som. Depois surgiu a ideia de se fazer alguma coisa mais experimental; pegar em roupas e acessórios do Rossi, ou ir-se para um campo de futebol filmar uma bola a andar sozinha, porque ele gostava muito de jogar. Havia uma série de ideias, mas nunca se concretizou nada.

Até que em Novembro do ano passado o Gson dos Wet Bed Gang veio falar comigo. Perguntou-me se eu queria filmar o primeiro concerto que eles iam dar em Lisboa. Eu disse que sim, podíamos fazer isso. Mas, como em todos os trabalhos que faço, não me fico só pela ideia inicial. Gosto sempre de acrescentar qualquer coisa, completar mais. E nessa altura disse-lhe “E se em vez de fazermos só o vosso concerto, incluíssemos também o backstage? E se filmássemos um dia antes do concerto? Então e se gravássemos os ensaios…?”. Tive assim uma espécie de epifania. Estava ali a oportunidade de fazer o estilo de vídeo que tinha procurado fazer estes anos todos. Disse-lhes que minha ideia era fazer uma coisa mais abrangente, envolver o nome, os amigos e a família do Rossi; incluir o crescimento do grupo, e a devoção total ao que o Rossi lhes deixou. Eles gostaram muito. Foi assim que surgiu. E o processo culminou com este hype que eles estão a começar a ter.

Como descreverias a forma que o documentário acabou por tomar?

Neste momento ainda não sei se tenho o documentário completamente fechado. Há duas semanas que não olho para ele, até para poder descansar, e para ter um distanciamento sobre o trabalho. Posso dizer que foi para aí à décima oitava versão que consegui encontrar este caminho.

No fundo, acaba por ser uma mistura de documentário com videoclip. Já há muito tempo que queria fazer uma mistura das duas linguagens para ver como é que corria, apesar de serem distintas.

E qual é para ti a relação entre o cinema e a música? Como é que as juntas nos teus trabalhos e videoclips?

Eu não faço muitos videoclips, mas quando os faço tento sempre aplicar qualquer coisa que nos remeta para o cinema. Não gosto muito daquela imagem do rapper sempre a cantar para a câmara, embora o hip hop tenha crescido com isso. Tento sempre ter uma narrativa lá no meio, e os videoclips são uma oportunidade para ir experimentando coisas novas.

Já tinhas experimentado trabalhar com este método de cruzar imagens tuas com material de arquivo?

Não, esta foi a primeira vez. Eu trabalhei durante dois anos com o Vhils, e fiz alguns trabalhos dentro desta onda, usando imagens dele um bocadinho mais antigas. Mas não era bem este formato com que ficou o documentário.

Como é que trabalhaste as transições do filme, nesse cruzamento entre o videoclip e o documentário? Percebe-se que existem vários ritmos, e os momentos de música entram com muita intensidade, destacam-se das passagens mais íntimas e resguardadas.

A nível de ritmo do documentário, tanto pela linguagem da câmara como pela montagem, sente-se muita vida, muitos cortes. Sente-se um fervilhar de vida dentro deles. E eu quis passar isso, a nível da câmara. Não queria ter a câmara como elemento que apenas mostra uma realidade, mas sim que fizesse parte. Quem visse, sentisse que estava lá dentro com eles. Eu fiz-lhes entrevistas, mas não quis queimar tempo do documentário com planos parados, a olharmos para eles a falar.

Depois tive a tal ideia de integrar os três momentos de videoclip, porque achei que fazia todo o sentido. Estamos a falar de uma pessoa que morreu, e de quatro rapazes que continuaram o trabalho dele. Mas são uma banda. A música tinha de estar bem presente. Era importante não nos esquecermos que estamos a ver músicos. Estamos a ver rappers.

Como é que correu a experiência de te aproximares destes teus amigos, tão importantes para ti, com uma câmara nas mãos? Foi difícil filmares as passagens de maior intimidade?

Quando eu estive na casa do Rossi e do Fabinho foi a parte mais complicada e emocional, para mim. Quando estive a filmar aquelas fotografias todas, os acessórios… ele era meu amigo. Eu sinto que eles sentem. Estás a filmar, e estás a reviver tudo novamente. O facto de estar com eles nas casas deles, foi um reviver dos tempos em que o Rossi estava vivo.

A ideia com que fiquei no fim do documentário é que ele permanece vivo. Mesmo na tua montagem, o Rossi está por todo o lado. No decorrer do concerto vai aparecendo ao longo da sequência. Parece que está lá…

Estamos a falar de uma pessoa que morreu, o Rossi. Mas não é essa a conclusão que eu quis que as pessoas retirassem. O Rossi continua vivo, está dentro deles, está nos sítios, no concerto. O facto de eu terminar o documentário com o concerto é a celebração daquilo que o Rossi queria mesmo. Eles levam o nome dele a todo o lado, a todas as músicas, ou cada vez que fazem publicações. O grupo vai lançar agora um EP que se chama “Filhos do Rossi”. Ele está sempre presente. Ao longo do documentário nunca sabemos como é que ele morreu, isso é completamente secundário, e ninguém se pergunta. O que interessa é o que ele deixou, e eles conseguem passar bem essa mensagem.

Quais são os teus planos para o futuro?

Vou fazendo o meu percurso devagar, não tenho pressa. Mas o meu objectivo daqui a uns anos é estar dedicado ao cinema, enquanto realizador, editor, câmara. Não me defino só como realizador, porque faço um bocado de tudo. As pessoas ligadas ao cinema que cresceram na minha geração aprenderam esta coisa do “desenrasca”. Temos de fazer um bocado de tudo. Não podemos estar à espera de ter trinta pessoas para fazer um videoclip, porque isso em Portugal não acontece.

Quais são as próximas oportunidades para podermos ver o documentário?

O lançamento na internet ainda não tem data. Estou dependente do compromisso com os Wet Bed Gang. Eles estão a lançar vídeoclips de três em três semanas, e eu também vou fazer um videoclip para uma música deles, que é a última música do documentário, “Já Passa”. Eles vão lançar o EP, e só então iremos lançar o documentário na internet. Mas isto ainda não tem data definida. Até lá, estou a enviar o documentário para festivais, e vou tentar arranjar mais algumas sessões especiais, como a que fizemos no Bar Irreal, em Lisboa, há três semanas. Convidaram-me, mostrei o documentário, estava muita gente a assistir. Temos a página do documentário, e podem ir consultando as novidades.

Fotografias de Bernardo Lima Infante

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