‘American Dream’: os LCD Soundsystem permanecem incontornáveis

por Tiago Mendes,    2 Outubro, 2017
‘American Dream’: os LCD Soundsystem permanecem incontornáveis
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Muitos sentiram, ao saírem do Madison Square Garden na noite de 2 de Abril de 2011, que tinham testemunhado um momento absolutamente histórico. Legitimamente. E, de certa forma, não estavam enganados. O anúncio inesperado do fim dos LCD Soundsystem, há seis anos atrás, fez com que os 14.000 bilhetes para o último espectáculo esgotassem em quinze segundos. Pouco depois, os preços no mercado negro ascendiam a 1.500 dólares. Era o épico término – o funeral, como foi apelidado – de um dos projectos que mais tinha marcado a última década no mundo da música. Entre 2005 e 2011, o projecto liderado por James Murphy – músico, compositor e produtor dotado de um raro génio – revolucionou todo um género musical, cujos vastos referentes poucas vezes emergiam do universo underground a que se relegavam. No contexto do revivalismo post-punk, os LCD Soundsystem repescaram sonoridades da dança alternativa das décadas anteriores, tornando-as contemporâneas e injectando-as de sentido para a geração urbana da cena alternativa americana.

Alguns dos que tiveram a oportunidade de estar presentes na noite de despedida, e outros fãs acérrimos, contam-se entre os que mais se exaltaram (e, com isto, queremos dizer que se zangaram) com o anúncio do regresso dos LCD Soundsystem. Por motivos vários. Primeiro, a sensação acre de terem sido enganados, de terem brincado com as suas expectativas; depois, o medo latente de a banda não estar à altura de si própria, e poder, potencialmente, comprometer o seu histórico legado. São múltiplos os exemplos, nos últimos anos e não só, de bandas icónicas que voltaram a editar música, mas sem conservar a faísca e energia que a sua carreira já arquivava como tesouro. Num comunicado publicado em Janeiro de 2016, James Murphy quase que pedia desculpa pelo regresso do projecto – mas afirmava que, dadas as circunstâncias e o largo caudal de músicas novas que tinham nascido entretanto na sua cabeça, seria artificial não as tornar realidade e partilhá-las com o mundo.

Seguiu-se uma digressão mundial, que serviu para Murphy e os restantes amigos e companheiros de banda voltarem a aquecer os engenhos. Decorria em simultâneo a gravação e produção do álbum que viu nascer a luz do dia no passado dia 1 de Setembro. American Dream é o primeiro trabalho desta segunda era dos LCD Soundsystem. E não é que confirmaram e renovaram o seu legado como a mais importante banda do dance-punk?

James Murphy tinha muita coisa para nos dizer. Numa América conturbada e dividida, após as eleições presidenciais do passado Novembro, o compositor e produtor traz-nos temas que não deixam de reflectir sobre essa desilusão. “Call the Police”, talvez um dos que o sublinham de maneira mais óbvia, nasceu como o primeiro single. A situação política é uma das possíveis interpretações de uma canção que traz para cima da mesa temas como a desigualdade e a revolução, servindo-se de um balanço energético de rock electrónico e de uma proeminente guitarra com direito a solo. As guitarras, essas, acabam por marcar muita presença ao longo de todo o álbum. Um dos usos mais criativos dado ao instrumento é em “Other Voices”, com o recurso a melodias microtonais; em dado ponto, também as vozes se emaranham na confusão harmónica, em combinações difíceis de compreender do ponto de vista da escala musical ocidental. O efeito funciona de forma assombrosa, parecendo que as vozes e as guitarras vêm de fora, que nos são estranhas.

Uma diferença relativa aos álbuns anteriores da banda é o foco crescente no trabalho atmosférico, frequentemente relegando para segundo plano as melodias viciantes, que no passado eram arma constante. É um álbum mais negro, mais depressivo – apesar da capa mostrar um céu azul brilhante, numa composição de estética questionável. Não será estranho fazer comparações com uma determinada fase do som dos Joy Division; ou, noutras canções, com o trabalho dos Talking Heads, que são uma referência para os LCD Soundsystem desde o início do projecto. Há ainda uma outra personagem que vai marcando presença ao longo do álbum, desde o pretexto à concretização: David Bowie. O músico, amigo de Murphy, foi uma das pessoas que mais o incentivou a voltar. Numa entrevista ao NME, revelou que Bowie lhe perguntou uma vez se lhe provocava desconforto o regresso dos LCD. Depois de James responder que sim, Bowie ter-lhe-á dito: “Good. It should. You should be unconfortable”. Esta última frase surge, ipsis verbis, no final de “Other Voices”. Numa sentida homenagem, a última faixa do disco – “Black Screen” – fala apenas do herói musical que nos deixou no início de 2016. O piano que encerra o álbum soa a swan song, um bater de asas; uma injecção de vida, acústica, no final de um álbum que usa e abusa dos sintetizadores.

Não que usar e abusar seja, neste caso, uma crítica. Os Arcade Fire também o tentaram, principalmente no seu último álbum (não é que as introduções de “Other Voices” e “I Used To” se assemelham à sonoridade 80’s de Everything Now?). Mas os LCD Soundsystem fazem-no de forma mais orgânica, é-lhes mais natural; estão no seu território. Mesmo quando se estendem em secções compridas (e embora em American Dream não as haja em tão grande número), o grupo não recorre a loops. A introdução da primeira faixa é um bom exemplo desta técnica: o teclado surge, repetitivo, mas com falhas pontuais de ritmo e timbre; é performance, é trabalho imperfeito, interpretado ao vivo, guardado para a posteridade como obra de arte.

Duas das canções mais fortes do conjunto surgem lado a lado, precisamente no centro do alinhamento. “How do You Sleep?” entra para a elite dos momentos mais grandiosos produzidos pela banda. Os nove minutos de duração constituem uma viagem. Começamos por nos envolver com uma série de acordes graves, e uma batida básica e aparentemente desinteressante. Mas lentamente a atmosfera transforma-se, e um sintetizador que assinala convictamente a sua presença vem desvendar toda uma nova realidade. A segunda metade da canção, já depois de o som se instalar definitivamente, é um momento de catarse. De maneira muito diferente, mas com o mesmo poder magnético para o ouvinte, “Tonite” é um autêntico hino de pista de dança – que, à boa maneira LCD Soundsystem, acaba por nos apresentar uma letra provocatória e pertinente. É a vez de o sintetizador mais contaminante do disco poder dançar.

A banda tem sido exímia em partir de uma ideia simples, e explorá-la num crescendo de camadas – intensidade musical e emocional – para um resultado impressivo. “Oh Baby”, a faixa que abre o álbum, é um claro exemplo disso. Com uma das melodias mais limpas do disco, é bonita e envolvente; os sons, que se vão apresentando à cautela, receando impor-se demasiado, compõem um resultado intimista e inspirado. Já “Emotional Haircut” revela a faceta oposta da banda: no exercício rock mais assumido de American Dream, a canção leva tudo à frente, numa corrida frenética que certamente irá colocar plateias a saltar: “Oh, raise a glass to the bodies in here / We’re gonna toast till the bodies all soak up the bass”.

American Dream é mais um sólido lançamento de uma banda que parece ter um toque de Midas sobre aquilo que cria. Explorando uma sensibilidade musical apurada, com muita paixão envolvida e um q.b. de experimentalismo e frescura, os LCD Soundsystem trazem-nos um som incontornável e actual. Embora o novo álbum não pareça, à partida, ser tão essencial como Sound of Silver, está ao nível da forte discografia do colectivo. Embora o termo IDM (Intelligent Dance Music) tenha sido forjado para designar algo de completamente diferente, os LCD não estão distantes de ser isso mesmo – música de dança, pretensiosamente inteligente. É um projecto com muita humanidade e espontaneidade espalhadas, que não dispensa o recurso a múltiplas almas em palco, a contribuir para o som crescente e cheio a que cada faixa se eleva. Aguardamos com curiosidade a força com que as novas canções se apresentarão ao vivo. E desconfiamos que James Murphy & Co. têm ainda muito mais para nos dar. Sintam-se bem-vindos; e voltem sempre que sentirem que é o melhor para todos.

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