Alice no país das desculpas

por Rui Cruz,    2 Dezembro, 2018
Alice no país das desculpas
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Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.

Planear as férias no horário de trabalho, gastar 50€ em ovos mexidos num brunch porque vimos uma repetição de “How I Met Your Mother” na Fox Comedy e então pensamos que somos sofisticados porque estamos a fazer como os americanos da TV, ficar horas em filas num festival para arranjar um porta-chaves de plástico só porque é de borla e dá para meter inveja ao amigo que ficou em casa… tudo isto são características comuns que compõe o normal cidadão nacional, no entanto nada grita “sou português” como inventar desculpas para tudo o que corre mal, principalmente quando o culpado és tu.

Pode parecer uma coisa recente, todavia a nossa tradição de desculpabilização vem de longe. Basta ver que já quando andámos a fazer churrascadas com qualquer gajo que não comesse chouriço ou miúda que soubesse ler era porque “Deus nosso Senhor e Seu filho Jesus, o Cristo, assim o pediam”, quando fomos à falência 3 vezes foi sempre culpa de “crises internacionais” e quando um reality  show bate recordes de audiências a culpa é sempre dos “parolos dos outros” apesar de todos vermos porque “pá, dá para gozar”. Nós, os puros e inteligentes, não temos culpa de nada!

Borba foi o mais recente exemplo. Há uma estrada em mau estado numa pedreira, há relatórios aparentemente de toda a gente que já nasceu, viveu ou um dia pisou Portugal a dizerem que a estrada está má e que vai haver uma catástrofe um dia destes, há o dia em que a tal catástrofe anunciada acontece, há mortes e sofrimento e famílias desfeitas, o que não há é culpados. O Governo passa a culpa para a Autarquia, que passa para os privados, que por sua vez passam para Direcção Regional da Economia, que passa para a Direção Geral de Energia e Geologia, que depois vai passar para outro qualquer e por aí adiante até aparecer outra tragédia que mate mais gente e ocupe o attention spam da imprensa umas semanas. No final de tudo, e depois de se criarem 3 comissões de inquérito que ajudarão meia dúzia de bons rapazes a aumentarem o seu património, vai-se chegar à conclusão de que a culpa ainda é minha porque um dia dei um pontapé num paralelo.

O que é mais engraçado é que a desculpabilização portuguesa é inversamente proporcional ao desejo que temos de poder. Todo o português, eu incluído, adora ter um bocadinho de poder, por isso é que há um chefe em cada um de nós. Temos chefes de departamento, chefes de claque, chefes de repartição, presidentes de condomínio, directores da Associação de Filatelia do Sul do Tejo… adoramos cargos! Adoramos poder dizer que mandamos em alguma coisa, pelo menos até essa coisa dar barraca. Somos uma espécie de anti Homem Aranha, queremos o grande poder, não queremos é grandes responsabilidades. Aliás se o Homem Aranha tem nascido em Alverca em vez de NY, a lição que o Tio Ben lhe teria dado seria mais “com grandes poderes vem grande prestigio e se fores esperto um bom salário também. Vá, aproveita e põe-te fino!”

E isto não se reflete só nas grandes coisas, reflete-se em tudo. Até na maneira pacífica como aceitamos que nada se resolva ou que ninguém, nunca, arque com consequências. BES, incêndios, Borba, Marquês, Tecnoforma, Submarinos, PPPs, cheias, Emerson um ano a titular… tudo casos em que os culpados continuam a ter uma vida bem mais descansada do que a minha ou a vossa e a verdade é que não fizemos assim tanta força para a deixarem de ter. E sabem porquê? Porque no fundo sabemos que, no lugar deles, íamos ser iguais. Está-nos no sangue. As desculpas, a desresponsabilização e a ambição cega, mas saloia.

Deputados pedem a colegas para assinarem por eles a “folha de presenças”? Nós adormecemos e ligamos para o escritório a dizer que estamos presos no trânsito. Um autarca mete uns milhões numa offshore? Nós fazemos aquele preço sem recibo por baixo da mesa. Um ministro falsifica o CV? Nós dizemos que temos um óptimo domínio de línguas estrangeiras no Linkedin porque um dia sacámos uns instagrams numa festa de Erasmus. E quando somos apanhados, fazemos exactamente o mesmo que eles: negamos tudo e metemos as culpas em alguém ou alguma coisa, nem que seja num computador avariado, como eu quando não me apetece escrever. E é por isso que até barafustamos quando a notícia rebenta, mas não muito. Porque no fundo, no fundo, fazemos o mesmo à nossa escala e um dia se tivermos oportunidade vamos aproveitá-la.

Tirando eu, que sou muito honesto. Não tenho culpa

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