Aleste: na ilha da Madeira há uma grande festa de amigos aberta a todos

por João Rosa,    30 Maio, 2019
Aleste: na ilha da Madeira há uma grande festa de amigos aberta a todos
Fotografia de João Rosa / CCA
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Escrever sobre o que se passou num festival acarreta sempre algum grau de criatividade em relação ao ângulo com o qual apresentar os acontecimentos face a um espaço limitado. Uns vão querer saber da música, outros mais do ambiente; grande parte provavelmente de ambos. Mas o Aleste, que acontece no Funchal, não é um festival. Porquê? É melhor, desta vez, começarmos com uma história.

O Aleste é a história do convívio de um grupo de amigos transformado em festa para todos. É a história de um local paradisíaco entorpecido pelo turismo e pela distância, tornado vivo. Quem verá fotos presumirá de imediato que é tornado vivo pelo seu arraial pintado a cores garridas ou pelo bem próximo vapor do oceano, mas transparece que é principalmente pelas pessoas que o constroem.

Quando Fábio Remesso e Diogo Freitas organizavam festas com amigos no antigo Madeira Story Centre, a palavra Aleste ainda não existia. Mas quando Pedro Azevedo (programador do Musicbox e conhecido nas pistas de dança tingidas de tons tropicais como La Flama Blanca) actua no Barreirinha Bar Café — gerido por Fábio e local de peregrinação por quem frequenta a cultura mais alternativa da ilha; o duo passa a trio e o conceito começa a ganhar forma. Mesmo em frente ao bar, por baixo de um miradouro sob o escarpado promontório, erguem-se uma série de plataformas que constituem o Complexo Balnear da Barreirinha, que termina num idílico pontão centímetros acima do Atlântico. E aí nasce o Aleste.

Acabam por nascer também outras ideias, com o mesmo cunho. O Aleste cresce os seus braços, e ramifica-se em residências artísticas e em festas distintas com identidades próprias. Numa região periférica onde a oferta cultural está mais focada nos turistas que vêm de fora e onde importantes meios de difusão como a Antena 3 Madeira mantêm uma programação distinta da do continente, surge como importante pára-raios cultural. Dele nascem projectos como Madeira, dos Paus, ou Água-Má, de Filho da Mãe; e no seu leito acabam por visitar a Madeira artistas tão díspares quanto ÉmeConan Osíris ou Elijah Wood. Essa é a parte artística. E a festa?

Saído do aeroporto e ainda em viagem para o local pela primeira vez, as histórias abundam pela voz de Fábio Aldeia, um dos incansáveis condutores da organização e parte integrante do Aleste desde a sua génese: aquela vez em que tiveram que explicar à Coral que o mar tinha engolido por completo os barris de cerveja. O encore de Islam Chipsy com a mesma música durante 55 minutos — tamanha a emoção do público. O concurso de mergulhos em chapa (slapas) cujo primeiro prémio era um barril de cerveja em casa com direito a mordomo para a servir. Contos saídos de uma mitologia tingida de eterno Verão. E se ao aterrar chegámos a recear o pior — a meteorologia insistia em manter-se tépida e nublada junto ao aeroporto — a atmosfera modifica-se a cada túnel por onde passamos por entre as íngremes encostas montanhosas, as nuvens a roçar os picos agudos da acidentada e bela paisagem.

A montanha dá lugar à cidade e antes que nos apercebamos, estamos frente a frente com o oceano sob um calor abrasador e sol de Verão, nas janelas do lendário bar onde tudo começou. O Barreirinha Bar Café, quartel-general da festa, serve de albergue a quem já chegou — sejam staff, músicos, amigos, conhecidos ou quem esteja só de passagem. A equipa que forma o núcleo duro do arraial dá os últimos retoques entre o bar e o recinto, a poncha já a ser ensaiada para o percurso que se iniciaria dentro de momentos. Lá em baixo, tudo a postos para o “melhor dia de praia do ano”. Incluíndo o pessoal que, um dia mais cedo, decide já atirar-se ao Atlântico.

Fotografia de João Rosa / CCA

“Poncha Puxa Poncha” é uma rota turística regada a poncha, bebida local, planeada a pensar no número crescente de amigos do Continente que voa de propósito para a festa. A palavra “amigos” não é escolhida ao acaso: se o grupo que se reúne no Jardim Municipal do Funchal — composto por velhos conhecidos, caras novas e até muitos dos artistas que actuariam no dia seguinte — é ainda pequeno, o gelo não tarda a quebrar-se incendiado pela iguaria alcóolica. Os pontos de passagem, para onde o grupo se desloca em procissão de copo em riste, incluem a emblemática mercearia Dona Mécia — antigo solar do século XVI que serve a todos poncha de maracujá; Museu Café, na histórica Praça do Município; Pharmacia do Bento e The Number Two, já a atravessar em pleno a zona histórica em direcção à Barreirinha.

Fotografia de João Rosa / CCA

O sol já posto para lá do Atlântico, a multidão adensa-se e preenche cada canto do bar, miradouro e recinto. A primeira noite de festa é gratuita, e Conjunto Corona preparam-se para entrar em palco — salvo seja, porque nada separa o hip-hop satírico e poderoso de dB e Logos do público que se junta bem próximo. Tocam no andar de cima do complexo, o mesmo sítio onde outrora o mítico concerto de Islam Chipsy marcou a história do festival; e para onde tiveram de se deslocar após o mar galgar o recinto em pleno temporal. Mas desta vez é intencional.

A poncha substitui o hidromel oferecido pelo já familiar Homem do Robe, e a energia aquece de tal forma que não tarda até que o público invade e dança no meio da banda. “Demasiado gentis”, citação carismática e mais que típica de David Bruno, é também reflectida nos próprios Corona enquanto oferecem um encore explosivo já inteiramente engolidos em multidão.

Fotografia de João Rosa / CCA

Com o mar e o recinto para trás, cobertos na escuridão de uma noite em antevisão que termina ainda cedo (“para que não se destruam já para amanhã”), a festa continua para os resistentes ou no dia seguinte para os restantes, logo a seguir ao almoço.

Manhã feita, oportunidade perfeita para um passeio pela promenade funchalense, onde diversas festas se fazem sentir. Passamos por um festival de carros clássicos, ouvimos swing pelos altifalantes. “Parece que este fim-de-semana acontece tudo ao mesmo tempo”, ouve-se na rua junto à marginal. Não é mentira: um dia antes, terminava o Festival Fica na Cidade, que trouxe à Madeira nomes como Manel Cruz ou Dead Combo. E, pouco antes da actuação de Corona na noite anterior, ficamos a saber que também Salvador Sobral actuava com o seu projecto MUTRAMA noutra parte da cidade, convidado pela Feira do Livro.

Às 15h, o recinto do complexo balnear abre de novo as portas vestido a rigor para a festa que se avizinha. Bandeiras coloridas estão penduradas entre os postes da falésia enquanto a ondulação calma do Atlântico serve de repouso ao grupo que aproveita o início de tarde para mergulhar na zona delimitada para o efeito. Desta vez tudo parece alinhar-se: o sol veio para ficar e a organização concorda: “É definitivamente o ano em que temos mais sorte com o mar”. Mar esse que, mesmo assim, realce-se — continua a uma pequena onda de saltar palco dentro, tal a deslumbrante proximidade.

Com o sol ainda a pique e a tarde a repousar no torpor pós-almoço, Maria (Maria Reis), um dos rostos principais da lisboeta Cafetra Records e das adormecidas Pega Monstro, entra em palco apresentando o seu projecto a solo. Se no bandcamp podemos encontrar um cavernoso lo-fi — letras emotivas que ecoam em reverberação — bem junto com uma inesperadamente bem-vinda cover de música tradicional alentejana; Maria volta a surpreender ao vivo, sem guitarra e equipada apenas com a sua voz em distorcidos e hipnóticos loops que manipula live. Caloroso psicadelismo que roça por momentos o club e por outros o pastoral, marca o início de uma tarde que dificilmente seria mais expansiva musicalmente.

Fotografia de João Rosa / CCA

Longe da expectativa e antecipação que pauta o ritmo do moderno festival urbano, que frequentemente sobrepõe bandas em palcos e horários com fãs agarrados bem firme às grades, no Aleste respira-se. Até porque no palco não há grades nem pit. Com apenas sete artistas a preencher o cartaz do derradeiro dia de arraial, o recinto vive na eterna tranquilidade do suave convívio; um daqueles encontros onde ninguém olha para o relógio. Por entre dedos de conversa do público, que se dispersa sem preocupações por cervejas e miradouros, entra a conta-gotas material no palco, e actua Black entre cada artista.

Nelson Gomes, nome por detrás de projectos como a Filho Único e Príncipe Discos, ocupa-se de preencher o recinto com sets progressivos: descontraídos e tropicais enquanto o chão ainda brilha e a pista não sua; gradualmente mais dançáveis à medida que a tarde se transforma em noite, por entre escolhas interessantes que mantinham o Shazam à deriva.

Fotografia de João Rosa / CCA

Mais distante do esotérico cantar de Maria está a guitarra de Norberto Lobo, virtuoso instrumentista que se destacou com a sua residência na Galeria Zé dos Bois e que protagoniza o Carta Branca — programa de residência artística do Aleste — deste ano. Norberto esteve desde o início da semana anterior à festa na ilha a trabalhar em material novo, e é na companhia do seu estilo muito próprio que o encontramos em palco. Ilusionista de seis cordas, dialoga com o público apenas através do instrumento, de onde saem composições novas e antigas. Na sua ambivalência entre a complexidade do jazz e o timbre do folk, prova ser a banda sonora ideal para mergulhar no oceano e flutuar na costa, num dos momentos mais relaxados do festival.

Fotografia de João Rosa / CCA

Sob a íris de uma tarde que insiste em não se transformar em noite, entra em palco Primeira Dama (Manuel Lourenço) acompanhado dos restantes elementos que constituem a banda Xita: António Queiroz, João Raposo, Martim Brito e Inês Matos — assim intitulada como parte do jovem colectivo Xita Records. Se à partida, aos insuspeitos, a combinação deste grupo com Lena d’Água poderia parecer bizarra, qualquer dúvida se desvanece após o primeiro tema que interpretam juntos após a sua sonante entrada. Apesar das vivências separadas por uma quadra de dezena de anos, a receita pop de Primeira Dama e de Lena vive dos mesmos ingredientes, e, injectados com uma nova roupagem de leve acidez de garagem com o cunho Xita, partilham e alternam entre os temas de um e do outro. Impossível é deixar de sorrir com a enternecedora relação, não fosse Primeira Dama pegar no copo de poncha gelada ao seu lado em palco sem receber um carinhoso “Manel, filho, isso faz-te mal à garganta!”; minutos após a própria Lena d’Água, honrando em pleno o seu nome, se refrescar despejando sem rodeios uma garrafa de água sobre o rosto. O público aproxima-se cada vez mais e recebe a banda calorosamente, juntando-se à muitas crianças que brincam junto ao palco.

Fotografia de João Rosa / CCA

A plateia bem composta, o horário entra já no cobiçado slot de lusco-fusco. As honras de final de dia cabem a Selma Uamusse. Versátil vocalista, após um invejável historial de participações em projectos como Wraygunn, tributos a Nina Simone ou Rodrigo Leão, lança em 2018 o seu primeiro álbum de originais. Em palco acompanhada por Augusto Macedo, Márcio Pinto e Nataniel Melo; o som de Selma não tarda a acender o rastilho pelo qual a tarde esperava, convertendo a Barreirinha numa tribal pista de dança. Mas não só de ritmo vive a festa: por entre mensagens sentidas e baladas emotivas, Selma conquista o público e o público conquista Selma. Após a dança frenética e incríveis agilidades de palco em saltos altos, acabam ambos abraçados à beira-mar; emocionante momento-chave na transição do dia para a noite. Quando chega a hora da despedida, ninguém está pronto para dizer adeus: “Como eu toquei mais tempo que eles, convido-os agora a partilharem o palco comigo”, e pelo palco entram Maria Reis, Primeira Dama, Norberto Lobo, Quim Albergaria e Ivo Costa (Bateu Matou) numa jam sentimental e improvisada.

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Na conversa anterior ao festival, Pedro já tinha advertido acerca da meticulosa posição de ZA! no alinhamento do dia. O que nada preparava os espectadores, incautos, era para os próprios ZA!. Originários de Barcelona e protegido tesouro mundial, o duo composto por Pau Rodríguez (psicólogo de formação, especializado em Musicologia) e Eduard Pou (que também é guionista e jornalista) entra em palco com uma nota de sintetizador dissonante e uma linha percussiva tocada nos rails metálicos do próprio backstage. Rotulam-se a si próprios como post-world music — uma etiqueta que, por si só, não faz justiça à performance eletrizante e camaleónica que oferecem. Boquiabertos, os seguranças distraem-se dos postos, os artistas dançam na varanda dos bastidores e o público, em completa euforia, salta várias vezes para o palco em plena libertação de endorfinas. “Foi a recepção destas pessoas que nos fez curtir tanto de tocar neste festival” — revelam-nos mais tarde na companhia de várias ponchas de tangerina. Como descrever o indescritível? Por entre louco free jazz, noise experimental a roçar quase o kraut de uns Boredoms e grooves ácidos pontuados a bateria frenética (a lembrar muito os irmãos Paus na sua mais recente aventura insular, ou em momentos como Maningue Nais) são simultaneamente a aposta mais arriscada e o clímax mais épico da noite.

Fotografia de João Rosa / CCA

A energia climática da festa é aproveitada pelo próprio Pedro Azevedo, que, na pele de La Flama Blanca, toma em improviso conta do deck e transporta o público para uma América do Sul em pleno perreo. Um veleiro, ancorado ao largo do pontão, observa a festa a curta distância, os seus incógnitos tripulantes de copo certamente na mão.

Transição para Bateu Matou: Quim Albergaria (Paus), Ivo Costa (Batida) e Riot (Buraka Som Sistema) são o trio de bateristas que provavelmente só vão encontrar ao vivo ou no YouTube. Entram em palco prontos a dar baile — árdua tarefa após a energia da colossal destruição sonora deixada por ZA!. World bass, disco funk ou hip-hop, a música rítmica de Bateu Matou é contagiante, frenética e convence o público; ainda que não com tanta intensidade. São, no entanto, a força motriz que transporta a festa para o seu set final; momento clubbing nas mãos dos deep cuts de Black.

Fotografia de João Rosa / CCA

Apenas seis artistas, intercalados por Flama e Black, e, no entanto, memórias de uma festa que soube a tanto, tamanha a intensidade crescente e energia do público. É com pesar que abandonamos o emblemático recinto da Barreirinha e quase desejamos um festival inteiro neste cenário. Mas será que saberia ao mesmo? “O ano passado tivemos de encolher o recinto para manter o Aleste intimista o suficiente”, revelam-nos, referindo-se à única vez que o evento saiu do seu berço: tiveram de se mudar para a Ponta Gorda na última edição devido a obras na Barreirinha. A experiência, apesar de positiva, não preencheu as medidas do formato. Este ano, o público encheu o espaço o suficiente para esconder o horizonte, mas mantendo distância suficiente para a dança e para o encontro.

O melhor dia de praia do ano pode já ter terminado, mas a festa ainda está longe de ter fim. Domingo, dia seguinte, o programa de festas marca como próxima paragem o terraço do vistoso Castanheiro Boutique Hotel, e, como anfitriões, La Flama Blanca himself na companhia de Kelman Duran. Por imprevisto o segundo acaba por não comparecer, sendo a festa habilmente conduzida por Flama. Não estejamos com rodeios, no entanto, e é necessário informar o caro leitor de que o seu set é melhor ouvido deitado num jacuzzi de gin na mão com uma deslumbrante vista sobre o Funchal: e é exactamente isso que juramos que aconteceu.

Fotografia de João Rosa / CCA

Pouco mais de 48 horas passaram desde o aterrar em Santa Cruz e à obrigatória selfie com o busto de Cristiano Ronaldo. No entanto, na intimista festa de final de tarde, praticamente todas as caras já são conhecidas, e grande parte dos nomes também. Juntos, provámos as ponchas locais na companhia dos músicos que actuariam. Partilhámos espaços, concertos, conversa e até um jacuzzi.

Não é difícil perceber que o Aleste está longe de ser um festival, e não é apenas pelo motivo técnico das suas ramificações tomarem diferentes identidades pela ilha ao longo do ano. Não — o Aleste não é um festival porque nunca deixou de viver a sua premissa: a de um grupo de amigos que se reúne num local paradisíaco e lança um festão. A festa tem passeios, tem bebida, tem música brutal ao vivo e tem luxuosos fins de tarde na piscina, que duram até serem avistadas as primeiras constelações no firmamento. É uma festa que é um lugar seguro, repleta de amigos e amor — quer já os conheçam ou não. E tem o mais importante dos pormenores: vocês estão convidados.

O Aleste regressa em formato Ilhatrónica a 1 de Novembro na praça de fruta do Mercado dos Lavradores, bem no coração do velho Funchal, desta feita com o apoio NOS. Contará com as actuações de DJ Vibe, Moullinex e Diogo Freitas.

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