“Alecrim vs. Manjerona” e um amor moderno que não quer murchar

por Daniel Dias,    21 Outubro, 2019
“Alecrim vs. Manjerona” e um amor moderno que não quer murchar
Vítor Fernandes e Sónia Ribeiro são dois dos marionetistas em “Alecrim vs. Manjerona”. Fotografia: Daniel Dias / CCA.
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O nome Guerras do Alecrim e Manjerona vem de duas ervas aromáticas que eram “usadas em ranchos de Carnaval” no século XVIII. A peça foi escrita por António José da Silva, em 1737, e trabalhada pela Jangada Teatro, com o título Alecrim vs. Manjerona, para apresentação no Festival Internacional de Marionetas do Porto (FIMP). Rui Oliveira, que assinou o espectáculo com Ana Saltão, explica que “há duas raparigas e dois rapazes”: uma delas “gosta mais do alecrim e a outra gosta mais da manjerona”; os rapazes “interessam-se por elas” e tentam descobrir qual é a erva que cada uma prefere.

Estas são personagens que mal se conhecem e que entram num estereotipado jogo de sedução. Ana Saltão salienta que António José da Silva gostava de “criticar os maneirismos e as piroseiras da altura”: interessava-lhe olhar, com um sarcasmo bem vincado, para os códigos e as futilidades que podem ser encontradas nas relações interpessoais. Essas piroseiras, garante a artista, “têm hoje outra forma, mas permanecem”.

Rui Oliveira assumiu a função de director artístico mas também surge como intérprete na peça. Fotografia: Daniel Dias / CCA

O desafio passou, então, por “pensar na actualização da história” – até porque, adianta Rui Oliveira, os planos da equipa nunca consistiram em “fazer uma coisa etnográfica”. Alecrim vs. Manjerona transporta o conceito de António José da Silva para a contemporaneidade e para o mundo peculiar dos reality shows – esses “lugares onde traficamos ilusões e realidades”. O encenador menciona uma vontade de equiparar “essa parte de sedução e de conquistar a rapariga com a erva de cheiro” ao “objectivo final de ganhar um prémio num concurso de televisão”.

O Teatro Nacional São João refere que “cada personagem tem como propósito enganar os outros concorrentes para ‘ganhar o jogo’”. Ana Saltão lembra que o autor setecentista gostava de apontar o dedo às “falsidades do ser humano” – Gil Vaz e Fuas recorrem a uma série de esquemas absurdos e histórias complexas numa tentativa de atrair Clóris e Nise –, e defende que as pessoas, nesses programas televisivos, “também são personagens”. De certa forma, “é tudo estudado, é tudo feito, é tudo pós-produção”.

Luiz Oliveira (da Jangada Teatro) e Rui Oliveira são dois estudiosos da obra de António José da Silva. Fotografia: Daniel Dias / CCA

Rui Oliveira confessa que a vontade de “pegar na obra” de António José da Silva já era antiga. O co-criador desta adaptação fez, durante dez anos, parte do Teatro de Marionetas do Porto, onde viria a conhecer em João Paulo Seara Cardoso um “grande apaixonado” pelo trabalho do dramaturgo português com origens no Brasil. O responsável por Guerras do Alecrim e Manjerona ou As Variedades de Proteu (também de 1737, concebida com as colaborações musicais do compositor António Teixeira) fazia peças para marionetas porque “era um teatro mais pobre que o teatro da corte” – este último é que tinha o dinheiro necessário para “mandar vir as obras italianas”. António José da Silva “não tinha grandes meios”, pelo que “contratava alguns actores” e fazia sempre algo “mais pequenino”, “mais direccionado para o povo”.

A Jangada Teatro tentou, ao mesmo tempo, trazer a peça “para os nossos dias” e preservar a ironia que caracterizava o trabalho do artista falecido há 280 anos. “Há muita parte do texto original que continua em cena”, diz Rui Oliveira, mas há também alguma tradução da “linguagem da época”, que a companhia aproveita para transformar numa espécie de brincadeira recorrente: os concorrentes deste reality show – que nada mais é que uma glorificação espectacularizada das facetas menos espectaculares da vida – precisam de decorar o guião antigo e acham aquele linguajar “ muito esquisito”.

No fim, quase perdoamos os clichés ou os sotaques forçados: é “a vida como ela é”, arriscaria a equipa. Há três séculos, o piroseiro era tentar ganhar o amor da rapariga com uma erva aromática; hoje, ela tem “outra forma”, e tanto pode passar por reality shows, como por sites de relacionamentos ou por outro qualquer ecossistema curioso. A folha de sala de Alecrim vs. Manjerona deixa-nos com uma questão inquietante: “estaremos assim tão distantes dos valores vigentes em 1737? Ou a maneira de nos relacionarmos uns com os outros – e procurarmos o amor – só mudou na sua forma e não no seu conteúdo?”. Se calhar, de uma maneira ou de outra, no século XVIII ou no XXI, vamos ser sempre o rapaz que tenta desesperadamente escolher a erva de cheiro certa, ou a rapariga que espera que a sua flor de alecrim não murche nas suas mãos.

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