Abuso sexual: cartilha breve

por Frederico Lourenço,    26 Fevereiro, 2019
Abuso sexual: cartilha breve
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1. Vários livros sobre história da ópera no século XX falam de um famoso director do Teatro alla Scala de Milão, que era conhecido por dizer às bailarinas do corpo de baile: «se a menina for para a cama comigo não lhe posso garantir que será promovida a solista; só lhe posso garantir que nunca será solista se não for para a cama comigo».

2. É conhecido o comportamento idêntico de um famoso diretor de uma companhia de ballet noutro país, que tinha o mesmo discurso com os bailarinos com quem desejava ir para a cama.

No exemplo 2 não está em causa um «problema» de homossexualidade, tal como, no exemplo 1, não se trata de uma questão de heterossexualidade. Trata-se, em ambos os casos, de abuso.

Mesmo que a bailarina ou o bailarino «consentissem» em ir para a cama com o director, esse consentimento nunca seria digno desse nome. Não pode haver consentimento quando há uma disparidade na relação de poder; não pode haver consentimento verdadeiro se quem pressiona outrem para que aconteça uma situação sexual tem nas mãos a vida desse outrem que diz «sim».

Poderíamos extrapolar dos exemplos 1 e 2 para muitos outros âmbitos da vida humana. Mas fiquemos, hoje, pela brevidade.

Nos dois casos que citei acima, abusador e abusada/o são pessoas adultas. É grave — mas há muito mais grave.

No escalão mais condenável da gravidade está a situação que envolve uma pessoa adulta e uma pessoa menor de idade.

Essa pessoa menor de idade, colocada por um adulto numa situação em que se vê condicionada ou forçada a praticar ou participar em actos sexuais, está a ser vítima de um crime.

A palavra-chave é mesmo «crime». O padrasto que abusou da enteada não cometeu um acto de heterossexualidade, nem o tio que abusou do sobrinho cometeu um acto de homossexualidade. Ambos exploraram, é certo, a disparidade de poder e o ascendente que tinham sobre a vítima. Mas o que aconteceu foi que ambos cometeram um crime.

Aconteça onde acontecer esse crime — e seja quem for o abusador da pessoa menor, seja ele um príncipe da Igreja ou um cavador de enxada — trata-se sempre, repito, de um crime.

Encobri-lo, desvalorizá-lo, salvar a pele do abusador para proteger a reputação da instituição onde o crime aconteceu (muitas vezes culpabilizando a vítima por ter sido abusada) são atitudes que tornam o que já é mau muito — mas muito — pior.

O debate que agora se desenvolve na comunicação social e nas tão vilipendiadas redes sociais não resolverá o problema retroactivamente, nem desfará tudo o que aconteceu no passado.

Tem, no entanto, a vantagem de abrir as consciências e de contribuir para que tais situações deixem de ser encobertas no futuro.

Todos gostaríamos que a Humanidade progredisse de tal maneira que o abuso sexual nunca voltasse a acontecer. Sabemos que, infelizmente, esse futuro é utópico. O que há a fazer em relação ao abuso sexual é simples e diz-se de forma muito breve. É só isto: não encobri-lo.

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