A violência doméstica em tempos de pandemia

por Comunidade Cultura e Arte,    8 Junho, 2020
A violência doméstica em tempos de pandemia
Fotografia de Melanie Wasser / Unsplash
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Um texto da autoria de Vânia Sampaio e Sara Afonso, recém-licenciadas em Criminologia pela Universidade do Porto, e a completar mestrado em Terrorismo, Crime Internacional e Segurança Global no Reino Unido.

No dia 27 de março deste ano, a ONU advertiu para o potencial facto de os números da Violência Doméstica (VD) aumentarem devido à pandemia da COVID-19 (1, 2, 3). Tal não é surpreendente, pois estudos mostram esta tendência durante eventos catastróficos como desastres naturais, crimes de larga escala ou pandemias (4, 5, 6, 7, 8).

De facto, em vários países, como a China, Itália, Espanha, França, Índia, Austrália, Reino Unido e EUA, reportou-se um aumento de chamadas para linhas de apoio a vítimas que chegou até 60% (1, 2, 6, 7, 9, 10, 11, 12). Contudo, em Portugal, a 29 de abril, verificava-se um decréscimo de 39% de denúncias de VD em relação ao mesmo período
do ano passado (12). No entanto, questiona-se se isto se deve a uma verdadeira diminuição ou a outras razões, tais como o menor acesso das vítimas a meios para efetuar queixa (7).

Efeitos da COVID-19 na Violência Doméstica

A COVID-19 trouxe mudanças dramáticas ao nosso quotidiano e a sua rápida disseminação e ausência de vacina levaram a medidas de prevenção por vezes inéditas como o confinamento, o distanciamento social e o encerramento dos estabelecimentos não essenciais. Estes obrigam a que vítimas e ofensores passem mais tempo juntos em casa, o que reforça um ambiente que ajuda à perpetração de atos e comportamentos física e psicologicamente danosos (1, 6, 7, 9, 14, 15, 16, 17, 18).

Ademais, o facto de as rotinas se terem alterado tão drasticamente pode causar stress adicional ao ofensor, impactando o seu comportamento violento. Por exemplo, com os bares e restaurantes fechados, o consumo excessivo de álcool, um precursor da VD, pode passar a ser feito dentro de casa, aumentando o risco de vitimação da sua família (2, 4, 15, 16, 19). Além disto, muitos viram o seu ordenado reduzido ou perderam o emprego, aumentando as incertezas em relação ao futuro, o que, aliado à frustração, stress e raiva provenientes da situação, se torna um fator de risco (2, 4, 8, 15, 16, 18, 19).

Adicionalmente, a insegurança sentida nesta altura aumenta o poder e controlo que o ofensor tem sobre a vítima (2, 3, 14, 20). É comum os ofensores isolarem as vítimas para controlá-las mais facilmente e perpetuar o abuso, algo que a situação atual facilita, já que estas perdem as redes sociais de apoio como família e amigos, e têm, consequentemente, maior dificuldade de escapar da situação de abuso (2, 4, 15, 20). Existem inclusive relatos do uso do vírus como mecanismo de coerção e de controlo pelo ofensor ao transmitir informação falsa à vítima sobre medidas de quarentena, ou a limitar o seu acesso a itens essenciais, como desinfetante e equipamento de proteção pessoal (15, 17). Há também relatos de que as vítimas de VD têm medo de ir ao hospital por medo de contraírem o vírus (15).

Por isto, as restrições de movimento impostas para conter a disseminação do vírus têm o potencial de aumentar a VD ao torná-la mais frequente, severa e perigosa (13, 16, 18). Como tal, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, advertiu para o facto de estas medidas de contenção poderem, de facto, encurralar as vítimas 3 .

Como auxiliar as vítimas durante o confinamento

A pandemia da COVID-19 apresenta-se como um desafio para o apoio às vítimas de VD, pois é especialmente difícil identificar os casos e intervir nos mesmos devido à perda de coesão e interação social e do acesso aos serviços que usualmente podem prestar apoio, o que contribui para a invisibilidade do fenómeno. Isto deve-se ao facto de muitos abrigos estarem encerrados ou lotados e os profissionais de saúde e autoridades estarem sobrecarregados (1, 2, 3, 6, 7, 8, 15, 17, 18). Contudo, esforços de adaptação têm sido feitos, como consultas e sessões de follow-up via videochamada e a criação de “palavras seguras” de modo a que as vítimas possam informar os profissionais de que se encontram numa situação de risco (1, 7).

Além disto, a ONU recomenda a criação de serviços de apoio e de emergência online ou através de chamada, assim como o uso das redes sociais e aplicações móveis, as quais devem funcionar 24 horas por dia (2, 6, 7, 14, 19, 20, 22). Isto permite a criação de vias de comunicação com as vítimas, o que facilita a apresentação de denúncias e o apoio e aconselhamento, além de poderem ser úteis na identificação de casos de risco iminente e
na criação de planos de prevenção para evitar situações de emergência (2, 9). Estes serviços devem contar sempre com equipas multidisciplinares e especializadas que são fundamentais para prestar o apoio holístico que as vítimas necessitam, e a informação sobre os mesmos deve ser publicitada com a ajuda da comunicação social (15).

De facto, os sistemas de apoio não estatais são os mais preferidos e valorados pelas vítimas, no entanto, o atendimento presencial tornou-se impossível, pelo que estas novas soluções têm predominado. Assim, o uso da tecnologia pode ser útil, contudo, nem todas as vítimas têm acesso a estas novas ferramentas, seja por questões financeiras ou pelo controlo imposto pelo abusador, pois sabe-se que, durante o confinamento, é mais fácil para os ofensores monitorizarem o telemóvel das vítimas e o seu acesso à internet, dificultando estas ações (4). Como tal, outras soluções têm também de existir (5, 16, 23).

Por isto, várias dicas têm sido disponibilizadas às vítimas para se manterem seguras durante o confinamento, como evitar locais com potenciais armas, por exemplo a cozinha ou a garagem, aquando de comportamentos agressivos pelo ofensor, e ter sempre o telemóvel carregado e na sua posse no caso de ser necessário pedir ajuda (24).

Igualmente, a ONU chama a atenção para a necessidade de criar mais abrigos para acolher as vítimas no caso de estas terem de sair de casa (6, 11). Assim, estes mecanismos de proteção também se têm adaptado para terem em conta a situação especial do confinamento e do distanciamento social, por exemplo, através da disponibilização de quartos de hotel como abrigo (15, 19, 22).

Perante a incapacidade das vítimas de denunciar, têm-se criado também recomendações mais específicas, focadas na consciencialização do sistema de controlo informal, pelo que o papel dos familiares e vizinhos é mais importante que nunca. Aliás, sempre que possível, as vítimas devem tentar passar o confinamento com outros membros da sua família, de modo a evitar ficar sozinhas com o ofensor (2, 15). Neste sentido, é importante o estabelecimento de parcerias com a comunidade e com certos profissionais que têm capacidade de ser aproximar das vítimas, como carteiros ou entregadores de comida. A comunidade deve ser encorajada a estar
especialmente atenta e garantir que os seus familiares, amigos e vizinhos estão seguros, assim como a denunciar qualquer situação preocupante (4, 15, 17, 18). Isto deve ser promovido através de campanhas de sensibilização dirigidas à população, de modo a comunicar a importância da sua cooperação, especialmente durante o confinamento (2, 6).

Medidas implementadas em Portugal

Para combater esta situação, o Governo Português desenvolveu no início de março um plano em articulação com a Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica. O seu primeiro foco é o reforço da capacidade de resposta através, por exemplo, da abertura de duas novas instalações temporárias de abrigo, o estabelecimento de planos de contingência com medidas urgentes como a maior monitorização das situações em acompanhamento, e o reforço da relação com outros serviços e autarquias (25, 26).

O segundo ponto prende-se com a consciencialização para o risco acrescido de VD através do lançamento de campanhas como a #SegurançaEmIsolamento, a divulgação dos contactos de apoio locais e de conselhos de segurança para as vítimas e comunidade, e o reforço e diversificação dos canais de pedido de ajuda (25, 26). Entre estes inclui-se o reforço do Serviço de Informação a Vítimas de Violência Doméstica através do 800 202 148, a criação do endereço de email violencia.covid@cig.gov.pt e da nova Linha SMS 3060 (26). A APAV também desenvolveu a campanha de sensibilização #NãoFiqueÀEspera “Dê a cara por quem não pode” (27).

Preocupações para o futuro

As medidas implementadas em Portugal e noutros países vão ao encontro aos pontos sugeridos na literatura e mencionados anteriormente. No entanto, tal deveria ter sido antecipado pelos governos, pois a VD tende a aumentar quando as famílias passam mais tempo juntas, sendo exemplos as férias ou o Natal. De facto, na Europa, os governos impuseram um confinamento sem preparar medidas para minimizar estes efeitos nefastos e só depois tentaram emendar a situação com soluções improvisadas (13).

Urge-se então que, durante a pandemia e as suas consequências, os governos continuem a prestar apoio especial a estas vítimas ao assegurar acompanhamento legal, médico e psicológico, tal como a criação de abrigos (1, 28). A ONU defende ainda a criação de estratégias legais para lidar com atrasos nos processos de VD e de esforços para garantir o acesso das vítimas aos serviços necessários (7). Além disto, mesmo quando o desconfinamento terminar, o perigo persiste pelas consequências do vírus noutras dimensões, como na economia e no emprego, existindo estudos que mostram que estas crises aumentam o risco de VD e de homicídios neste contexto (13).

Como vemos na presente pandemia, a resposta requer cooperação, coordenação e preparação de vários atores em vários setores (8). Isto é de particular importância, pois estima-se que o aumento da vitimação no âmbito da VD pode permanecer até meses após o fim da pandemia (4, 7). Com a possibilidade de existência de uma nova vaga da COVID-19, este tópico é de especial importância na sua preparação, pelo que todos os pontos aqui abordados, assim como outros, têm de ser cuidadosamente planeados. Sugere-se, assim, a integração do risco acrescido de VD na preparação a longo prazo de situações de pandemia (8, 17).

Bibliografia:

1. Bradley, N. L., DiPasquale, A. M., Dillabough, K., and Schneider, P. S. (2020) ‘Health care practitioners’ responsibility to address intimate partner violence related to the COVID-19 pandemic’. Canadian Medical Association Journal, 1-2. DOI: 10.1503/cmaj.200634

2. Marques, E. S., de Moraes, C. L., Hasselmann, M. H., Deslandes, S. F., and Reichenheim, M. E. (2020) ‘Violence against women, children, and adolescents during the COVID-19 pandemic: overview, contributing factors, and mitigating measures’. Reports in Public Health 36(4), 1-6. DOI: 10.1590/0102-311X00074420

3. Fernandes, R. C. (2020) ‘Covid-19: Violência doméstica é uma “epidemia escondida” no confinamento’. Público [online] available from https://www.publico.pt/2020/04/19/mundo/noticia/covid19-violencia-domestica-epidemia-escondida- confinamento-1912238 [6 May 2020]

4. Campbell, A. M. (2020) ‘An increasing risk of family violence during the Covid-19 pandemic: Strengthening community collaborations to save lives’. Forensic Science International: Reports. DOI: 10.1016/j.fsir.2020.100089

5. Galea, S., Merchant, R. M., and Lurie, N. (2020) ‘The Mental Health Consequences of COVID-19 and Physical Distancing: The Need for Prevention and Early Intervention’. JAMA Internal Medicine. DOI: 10.1001/jamainternmed.2020.1562

6. Organização das Nações Unidas [ONU] (2020a) Chefe da ONU alerta para aumento da violência doméstica em meio à pandemia do coronavírus [online] available from https://nacoesunidas.org/chefe-da-onu-alerta-para-aumento-da-violencia-domestica-em-meio-a-pandemia-do-coronavirus/amp/ [6 May 2020]

7. Organização das Nações Unidas [ONU] (2020b) COVID-19 and Ending Violence Against Women and Girls [online] available from https://www.unwomen.org/-/media/headquarters/attachments/sections/library/publications/2020/issue-brief-covid-19- and-ending-violence-against-women-and-girls-en.pdf?la=en&vs=5006 [10 May 2020]

8. Peterman, A., Potts, A., O’Donnell, M., Thompson, K., Shah, N., Oertelt-Prigione, S., and van Gelder, N. (2020) ‘Pandemics and Violence Against Women and Children’. CGD Working Paper 528. Washington, DC: Center for Global Development.svailable from https://www.cgdev.org/publication/pandemics-and-violence-against-women-and-children [6 May 2020]

9. Maranhão, R. A. (2020) ‘A violência doméstica durante a quarentena da COVID-19: entre romances, feminicídios e prevenção’. Brazilian Journal of Heath Review, 3197-3211. DOI: 10.34119/bjhrv3n2-161

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12. Cabral, M. F. (2020) ‘Covid-19: confinamento durante pandemia fez aumentar casos de violência na Europa’. Público [online] 7 May. available from https://www.publico.pt/2020/05/07/mundo/noticia/covid19-confinamento-durante-pandemia-fez-aumentar-casos-violencia-europa-1915499?fbclid=IwAR0KVlKLqOUq-
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19. Rukmini, S. (2020) ‘Locked down with abusers: India sees surge in domestic violence’. Aljazeera [online] 18 April. available from https://www.aljazeera.com/news/2020/04/locked-abusers-india-domestic-violence-surge-200415092014621.html [6 May 2020]

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21. Hirt, S., Ball, A., and Wedell, K. (2020) ‘Children more at risk for abuse and neglect amid coronavirus pandemic, experts say’. USA Today [online] 16 April. available from https://eu.usatoday.com/story/news/investigations/2020/03/21/coronavirus- pandemic-could-become-child-abuse-pandemic-experts-warn/2892923001/ [6 May 2020]

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23. Technology Safety (2020) Using Technology to Communicate with Survivors During a Public Health Crisis [online] available from https://www.techsafety.org/digital-services-during-public-health-crises [6 May 2020]

24. Refuge (2020) COVID-19/Coronavirus: Safety tips for survivors [online] available from https://www.refuge.org.uk/covid19-survivor-tips/; [6 May 2020]
25. Gabinete da Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade (2020). ‘COVID-19: Segurança em Isolamento. Medidas adotadas para apoio às vítimas de violência doméstica’. Nota à Comunicação Social. 7 abril. available from https://www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=21007bbb-45e7-40f2-a5ca-36c11670eb57 [10 April]

26. Conselho da Europa (2020) Promoting and protecting women’s rights at national level [online] available from
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27. APAV (2020) #NãoFiqueÀEspera – Dê a Cara Por Quem Não Pode [online] available from https://apav.pt/apav_v3/index.php/pt/2344-naofiqueaespera-de-a-cara-por-quem-nao-pode [12 May 2020]

28. Magnay, D. (2020) ‘Coronavirus: Fears for Russia's domestic violence victims during lockdown’. SkyNews [online] 4 May. available from https://news.sky.com/story/coronavirus-fears-for-russias-domestic-violence victims-during-lockdown-11983030 [6 May 2020]

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