A vida e obra de Victor Hugo

por Lucas Brandão,    19 Setembro, 2018
A vida e obra de Victor Hugo
Victor Hugo
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Victor Hugo nasceu com Napoleão e morreu com a República. Neste período, viu o seu país preenchido por guerras, revoluções e evoluções, sobre as quais teve sempre uma voz capaz e audível para lá dos amplos limites do seu país, França. O seu romantismo levou-o a ser um homem inflamado, sentindo aquilo que defendia, apaixonado pelas suas causas, preenchido pelo seu percurso literário. O seu legado permanece vivo, em especial como referência de um país que sempre se viu como montra do mundo, referencial nos valores da liberdade, igualdade e fraternidade, mas também nos excessos das luzes e dos corações.

A vida e a obra

Victor Marie Hugo nasceu a 26 de fevereiro de 1802 em Besançon, na região da Borgonha francesa. Terceiro filho do general Joseph Léopold e de Sophie Trébuchet, cresceu nesta zona oriental francesa, acompanhando a intensa turbulência que se foi sucedendo no país com o olhar e a sensibilidade de uma criança. O seu pai era um fiel seguidor de Napoleão Bonaparte, que considerava um herói, e assumia-se como um republicano de livre pensamento. Por sua vez, a mãe possuía uma educação católica e sustentada nos valores da realeza, sendo defensora da monarquia. A infância de Victor Hugo decorreu num confronto constante entre os valores dos seus progenitores, que assumiam os dois lados dos tumultos que desequilibravam a sociedade francesa. Entretanto, com a queda de Napoleão, a monarquia foi restaurada e o nome do seu pai não se tornaria contemplado no Arco do Triunfo, por ter falhado com a sua missão em Espanha, onde representava as mais altas patentes do exército.

Por via destas funções militares, a família, entenda-se pais, Victor e os seus dois irmãos, Eugène e Abel, mudava-se regularmente para lugares como Nápoles, e viajava pelos Alpes e pela zona mediterrânica. No entanto, a mãe separou-se do pai temporariamente, muito pelo nomadismo do marido e também pelas crenças pouco católicas que este tinha. Assim, foi ela a responsável por grande parte da educação e do crescimento de Victor, que exprimia as devoções pelo rei e pela fé na sua poesia e ficção inaugurais. Até 1848, ano da revolução que viria a implantar a República em França, Hugo seguiria as pisadas da mãe, mas essa mudança de regime fá-lo-ia respirar os ares republicanos, associados ao livre pensamento. Até lá, apaixonar-se-ia precocemente e casar-se-ia, com somente 20 anos, com a sua amiga de infância Adèle Foucher. Este matrimónio só se consumou após a sua mãe morrer, pois esta era contra o enlace entre ambos. Seriam cinco os filhos, sendo eles Léopold (morreu ainda criança), Léopoldine, Charles, François-Victor e Adèle.

Léopoldine também morreria cedo, com apenas 19 anos, em 1843, pouco tempo depois de se casar, ao lado do seu marido, após se afogarem no rio Sena, depois de serem derrubados por um barco. Seria um incidente que o abalaria muito, tendo tomado conhecimento do ocorrido num jornal que lia num café. Seria um tema sobre o qual dedicaria vários poemas, sobre uma mágoa que nunca chegou a superar na totalidade. Oito anos depois, com o golpe de estado perpetrado por Napoleão III, exilou-se em Bruxelas e, pouco depois, nas Ilhas do Canal, onde esteve até 1870, na sua Hauteville House, em plena queda definitiva do autoproclamado imperador. Mesmo com uma amnistia geral concedida pelo líder do governo, assistiu à distância à Guerra Franco-Prussiana e ao Cerco de Paris, já após a derrota no conflito, regressando somente em definitivo no ano de 1871.

A sua literatura seria contaminada por todas estas circunstâncias, redigindo o primeiro romance em 1823, “Han d’Islande”, e algumas edições de poesia, entre as quais se destacam “Les Orientales” (1829, inspirada na Guerra da Independência Grega, num hino à liberdade política e artística), “Les Voix Intérieures” (1837) e “Les Rayons et les Ombres” (1840, uma coletânea de poesia escrita imediatamente antes do exílio). Antes, já tinha publicado “Odes et poésies diverses” (1822) e “Odes et Ballades” (1826), aclamadas pelo seu fervor, pela eloquência, pela criatividade e pela fluência, predicados que o levaram a usufruir de uma pensão real do monarca Luís XVIII quando tinha somente vinte anos. Esta poesia tornou-se saudada cada vez mais com o tempo, numa reputação que alcançou as menções de um dos melhores produtores de elegias e de composições líricas do seu tempo. A tradição romântica que trouxe para as suas obras bebeu muito de François-René de Chateaubriand, que encabeçou a literatura redigida nos primeiros anos do século XIX. Foi na inspiração vívida e vivida neste autor que se envolveu proactivamente na política dos seus dias, e que o conduziu ao sucessivo exílio.

No entanto, com o crescimento da sua consciência social, os romances adotaram uma apetência pela dimensão crítica do vivido, que acabaram por resultar em “Le Dernier jour d’un condamné” (1829), um precursor subtil de “Les Misérables” (1862). A condenação de um homem à morte por guilhotina leva-o à expressão de algumas reflexões existenciais e sociais, em particular o desejo pela abolição da pena de morte. Esta consequência é, também, parte do trama de “Les Misérables”, em que Jean Valjean, ainda vítima de uma perseguição intensa feita pelo inspetor Javert, procura a sua redenção moral após sair da prisão de Bagne, também usada na obra de 1829. A ação sucede-se nos antecedentes da Rebelião de junho de 1832, que iria eclodir em Paris, e que viria a contestar a monarquia. A história do país é desconstruída até ao momento do enredo, numa cidade de Paris fustigada entre intrigas políticas, sociais, filosóficas, jurídicas, morais e conjugais. O romance viria a cair mal na crítica, em especial nos autores seus contemporâneos, como Gustave Flaubert ou Charles Baudelaire.

Fazer o poema da consciência humana, mas que não fosse senão a respeito de um só homem, e ainda nos homens o mais ínfimo, seria fundir todas as epopeias numa epopeia superior e definitiva. A consciência é o caos das quimeras, das ambições e das tentativas, o cadinho dos sonhos, o antro das ideias vergonhosas: é o pandemónio dos sofismas, é o campo de batalha das paixões. Penetrai, a certas horas, através da face lívida de um ser humano, e olhai por trás dela, olhai nessa alma, olhai nessa obscuridade. Há ali, sob a superfície límpida do silêncio exterior, combates de gigante como em Homero, brigas de dragões e hidras, e nuvens de fantasmas, como em Milton, espirais visionárias como em Dante. Sombria coisa esse infinito que todo o homem em si abarca, e pelo qual ele regula desesperado as vontades do seu cérebro e as acções da sua vida!

“Les Misérables” (1862)

Entre estas obras, para além de “Cromwell” (1827), “Hernani” (1830, obra que levou ao Comédie-Française, um dos palcos de vulto de Paris) e “Ruy Blas” (1838), chegou “Notre-Dame de Paris” (1831), um dos contos mais badalados do repertório do autor, e que até chegou a ser adaptado para o cinema, entre outros, pelos estúdios da Disney. No século XV, na governação do rei Luís XI, a cigana Esmeralda e o corcunda Quasimodo encabeçam a intriga que faz saltar a Catedral de Notre Dame para a ribalta do lustre parisiense. Ingerindo os contextos e pretextos da arquitetura gótica, acaba por motivar muitas ações de preservação dos edifícios pré-renascentistas que se proliferam por toda a França. “Les Traveilleurs de Mer (1866)” é o próximo grande êxito da sua literatura, já para lá de “Les Miserábles”, que dedica à ilha de Guernsey, onde se passa a ação e onde esteve exilado durante 15 anos. A história segue as tribulações físicas e jurídicas dos habitantes da ilha, que se deparam com um naufrágio em que os tripulantes correm perigo de vida. A missão de salvamento é protagonizada por um pescador que procura recuperar a aprovação do seu pai, um marinheiro, perante a figurativa representação do poder industrial na forma de um polvo gigante. A metaforização de um século XIX de progresso, de criatividade e de empenho perante o mal da dimensão material do mundo é um tema que nunca deixa de ser o centro das atenções em Victor Hugo.

É uma defesa empenhada da condição humana, prosseguindo em “L’Homme Qui Rit” (1869), levando o enredo para o século XVII, no qual uma criança sem-abrigo é a representação de uma ligação proibida com a aristocracia e com a família real, na forma de uma menina. O sucesso deste trabalho foi tímido e autores, como Flaubert ou Émile Zola, foram-no ultrapassando em reconhecimento e em prestígio. Victor Hugo aceitou o fim do seu momento e finalizou a sua carreira com “Quatre-vingt-treize” (1874), escrito pouco tempo após a experiência fugaz da Comuna de Paris, remontando ao reino do Terror durante a Revolução Francesa, nomeadamente às revoltas de Vendée e de Chouannerie. São três as histórias que se envolvem neste contexto muito específico, em turbulências diversas que enaltecem o heroísmo dos mais carenciados e lutadores. Acabaria por ser das obras mais aclamadas já após a sua morte, que prolongou a aura de herói com que foi recebido após o exílio, em 1870. Dois anos antes, tinha perdido a sua esposa, Adèle. Um regresso que projetou uma carreira política formalizada, que o viu na Assembleia da República durante dois anos. Em 1876, foi eleito para o Senado, numa presença que se viria a revelar fracassada, por via do autor ser um dissidente do pensamento institucionalizado então.

O desejo empenhado de um progresso humano sem fim foi depositado nas expectativas que tinha para o século seguinte, em que acreditava no fim dos dogmas, das guerras e das fronteiras. No entanto, a vida tornar-se-ia madrasta para si, que tinha sofrido um derrame em 1878. Com a morte de dois dos seus filhos e a hospitalização da filha Adèle num hospício, tudo tornou-se ainda mais crítico com a morte da atriz Juliette Drouet, a sua grande e verdadeira companheira de vida, dois anos antes da sua própria morte, em 22 de maio de 1885, depois de contrair uma pneumonia. Pouco tempo antes, fizeram uma marcha em homenagem ao autor, pouco depois do derrame que o havia abalado, muito dela inspirada na obra “Les Miserábles”. Paris passou a ter uma avenida com o nome do autor que viu morrer no seu berço, um berço que se fez acarinhar pela liberdade, fraternidade e igualdade que estabeleceram as suas bases republicanas. A cerimónia fúnebre recebeu honras de estado e foi acompanhada por mais de dois milhões de pessoas, que o viram ser sepultado no panteão nacional, o Panthéon.

A beleza basta ser bela para fazer bem. Há criatura que tem consigo a magia de fascinar tudo quanto a rodeia; às vezes nem ela mesmo o sabe, e é quando o prestígio é mais poderoso; a sua presença ilumina, o seu contato aquece; se ela passa, ficas contente; se pára, és feliz; contemplá-la é viver; é a aurora com figura humana; não faz nada, nada que não seja estar presente, e é quanto basta para edenizar o lar doméstico; de todos os poros sai-lhe um paraíso; é um êxtase que ela distribui aos outros, sem mais trabalho que o de respirar ao pé deles. Ter um sorriso que – ninguém sabe a razão – diminui o peso da cadeia enorme arrastada em comum por todos os viventes, que queres que te diga? É divino.

Les Traveilleurs de Mer (1866)

A política na sua vida e no seu entender

Para lá do Senado e da presença na Assembleia (para além de 1870, também em 1848, na Segunda República), Victor Hugo foi eleito para a Académie française, ocupando um lugar de prestígio nas figuras célebres das humanidades do país. Muitos foram aqueles que tentaram obstar a esta eleição, tentando opor-se ao romantismo que se pronunciava de novo. No entanto, a sua identidade permaneceu incólume, até mesmo quando se fez membro da câmara alta da monarquia do rei Luís Filipe I, dando voz à abolição da pena capital, à denúncia das injustiças e mostrando-se a favor de um governo autónomo e nacional, para além de se fazer valer pela liberdade de expressão.

Quando era membro da Assembleia Nacional, como conservador, em 1849, discursou a favor do fim da miséria e da pobreza, para além da educação livre para todas as crianças. Na chegada de Napoleão III, em 1851, opôs-se veementemente à constituição anti-parlamentar imposta e publicou panfletos de oposição a este em “Napoléon le Petit” (1852, que contém o adágio “2+2=5” que se celebrizaria na obra de George Orwell “1984”, num caso de negação da verdade pela autoridade) e “Histoire d’un crime” (1877). Também se exprimiu através da poesia em “Les Châtiments” (1853, num traçado por várias figuras corruptas que assumiram lugares de poder pela história, para além de referências a animais e a sua comparação a Napoleão III), “Les Contemplations” (1856, uma homenagem à sua filha falecia Léopoldine) e “La Légende des siècles” (1859, uma representação histórica e da evolução da humanidade de forma épica, num desenho cronológico, entre sátiras e lirismos que encarnam e simbolizam as várias eras vividas).

Sobre o colonialismo, dizia que a civilização distava do barbarismo através do Mediterrâneo, num aproveitamento civilizacional desenfreado por parte da Europa em relação aos indígenas africanos. No entanto, a sua principal luta foi dedicada à abolição da pena de morte, louvando o seu fim em Génova, em Portugal e na Colômbia. As suas atenções também alcançavam, desta feita, aquilo que se passava para lá do Atlântico, chegando a redigir cartas ao governo norte-americano para evitar que fosse aplicada. Com o cerco da armada prussiana em França, em Paris, Victor Hugo mencionou o facto de ter sido obrigado a comer animais do jardim zoológico da cidade, para além do que, com a escassez, acabou por comer. No período da Comuna, logo de seguida, foi um crítico acérrimo das atrocidades cometidas pelos dois lados, tanto dos revolucionários, como dos governamentais. No entanto, foi criticado e ameaçado de morte por apontar o dedo à recusa de garantir asilo político aos communards, responsáveis pela experiência governativa comunista em Paris, visados em penas que se estendiam até à de morte.

Entusiasta com a criação dos Estados Unidos da Europa, advogando ideais humanos e sociais para todos, fez também parte da Association Littéraire et Artistique Internationale, na defesa dos direitos dos artistas e dos autores, conduzindo à Convenção de Berna, destinada à Proteção dos Trabalhos Literários e Artísticos. Apesar disso, apresentava os usufruidores como coautores, que consagravam os sentimentos gerados e transmitidos por uma obra de arte.

A religião e a música

As crenças religiosas de Victor Hugo foram-se alterando e ajustando à sua ocasião de vida, ao seu estado de desenvolvimento pessoal. Crescendo com a reverência às hierarquias e autoridades católicas, foi-se tornando não-praticante e teceu críticas duras ao catolicismo e ao clericalismo. Foi-se interessando pelo espiritismo, mas acabou por consolidar-se como um racionalista, com uma crença inabalável no pensamento livre, embora acreditando na existência de Deus. A visão da Igreja Católica que Victor Hugo tinha levava-o a acreditar que esta era indiferente à opressão da classe trabalhadora por parte da monarquia. Pelas críticas que foi fazendo, viu-se regularmente na lista de obras banidas pela Igreja.

A animosidade prolongou-se no pós-vida, quando quis que ele mesmo e os filhos fossem enterrados sem a figura de um padre e sem um crucifixo no seu túmulo. Crente na vida após a morte, rezava diariamente em prol de se encontrar em direção ao destino certo. Da poesia que redigiu, destaca-se “The Pope” (1878, de teor anti-clerical), “Religions and Religion” (uma crítica à utilidade das igrejas) e “The End of Satan and God” (1886 e 1891, de louvor ao racionalismo). Para além deste legado, chega a peça “Torquemada” (1869), em que apresenta o vulto de Tomás de Torquemada, frade dominicano, perante a Inquisição Espanhola, levando o autor a condenar o fanatismo religioso e o catolicismo exacerbado. A sua publicação no ano de 1882 apontou às perseguições aos judeus que se efetuavam na Rússia à data.

No que à música concerne, Victor Hugo, como apreciador profundo de boas composições musicais, abriu as portas para que nomes, como Hector Berlioz e Franz Liszt, se aproximassem do autor para, com ele, conviver e colaborar. Entre apreços (Beethoven) e ódios de estimação (Richard Wagner), redigiu o libreto de “La Esmeralda” (ópera de 1836, da compositora Louise Bertin). O seu registo literário levou a que mais de uma centena de óperas se inspirasse no seu estilo, como “Lucrezia Borgia” (1833, da autoria de Gaetano Donizetti) e “Rigoletto” (1851, de Giuseppe Verdi). Foram vários os musicais que, postumamente, em adaptações várias, chegaram ao público, em especial “Les Misérables”, assim como melodias inspiradas no lirismo poético do francês.

Victor Hugo tornou-se num vulto muito maior do que aquilo que a sua carreira literária foi em quantidade. Escrevendo em poesia e em prosa com o sentido significativo dos seus valores, foram estes que o eternizaram e que o fizeram ser o estandarte para as Repúblicas que, consequentemente, se foram estabelecendo por toda a Europa. A liberdade foi incorporada pelo autor como uma causa máxima, a causa que une toda a humanidade, do mais abonado ao mais oprimido. Em busca de revelar e de derrubar essa adversidade, discursou em verdade, para um povo em busca da sua genuína e profunda igualdade, fazendo-se valer de um desejo intenso de uma capaz e sagaz realidade.

Há um grande tumulto; tudo fala em nós, excepto a boca. As realidades da alma, por não serem visíveis e palpáveis, nem por isso deixam de ser também realidades.

“Les Misérables” (1862)

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