A viagem alucinante pelo universo coerente de ‘Dark’

por João Miguel Fernandes,    15 Dezembro, 2017
A viagem alucinante pelo universo coerente de ‘Dark’
Dark
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2017 trouxe-nos inúmeras séries de grande qualidade. As produções televisivas estão a aproximar-se cada vez mais dos filmes, aumentando o nível da sua produção e a qualidade das mesmas. Um dos grandes motivos para este crescimento prende-se com o facto de empresas de streaming, como a Netflix e a Amazon Prime, estarem a investir fortemente na produção dessas mesmas séries, contratando guionistas e criadores de topo, além de actores consagrados ou jovens talentos. Existe um maior cuidado com o detalhe, e o que antes era visto como uma forma de passar o tempo e criar algum entretenimento, é agora visto como arte no seu estado mais puro.

Dentro deste contexto, é natural que a oferta aumente. Os competidores tentam aproximar-se uns dos outros, competindo não só a nível de orçamento a investir, como na qualidade técnica dos seus produtos. É por isto e muitos outros factores que é possível, em 2017, termos séries de televisão/stream como Game of Thrones, Mr Robot, Stranger Things, Mindhunter, entre tantas outras.

“Dark”, a série de ficção alemã da Netflix, surge neste contexto, embora de forma mais independente, com produção e elenco alemão. A qualidade das produções europeias não é nova, basta olharmos para “Les Revenants” (França) e “Bron”/”Broen” (Dinamarca/Suécia) para percebermos que conteúdo de qualidade em formato de série não é exclusivo das produções americanas.

Os criadores, Baran bo Odar e Jantje Friese têm trabalhado juntos em todas as produções, e este tipo de ambiente misterioso/thriller não é, de todo, novo para eles. Em 2010, assinaram o interessantíssimo “The Silence”, um filme alemão que certamente influenciou a série de 2017. A história aborda a fantasia e ficção de forma bastante orgânica com a realidade. A acção decorre numa pequena vila da Alemanha, onde várias famílias se cruzam, unem e lutam após o desaparecimento de duas crianças. Partindo deste ponto, Dark explora a “escuridão” humana dentro de cada um de nós, desde o mais jovem ao mais velho, do mais calmo ao mais agressivo.

É este confronto constante entre as noções de bem/mal que torna a série em algo mais do que puro entretenimento. Por um lado, podemos olhar apenas para a componente narrativa e técnica, onde o desenvolvimento da história se funde profundamente com fantasia, viagens no tempo, realidades paralelas e alterações temporais. A violência humana, o confronto social e natural instintivo são explorados em todos os detalhes. Tecnicamente, a série prima pelos seus zooms suaves, mas bem construídos, pela fotografia cuidada, com tons noir em todos os planos (luz, fotografia, chuva), e pela sua simetria. É preciso alguma atenção, mas, se repararmos nisso, torna-se impressionante a quantidade de planos simétricos que existem na série.  Dois candeeiros, um de cada lado, dois móveis, duas janelas, etc.

“Dark” é uma daquelas séries que sai na sombra de “Stranger Things”, mas que é melhor do que a série americana em vários aspectos: qualidade técnica, complexidade e originalidade do seu argumento, profundidade dos seus personagens, questões morais e sociais que levanta e excelente ritmo de evolução narrativa.

O que mais espanta é a qualidade na produção, interpretações, planos, banda sonora e toda a originalidade da série. A forma como a narrativa evolui é quase incrível. Ao contrário de inúmeras séries, que mantêm o mistério até ao final da temporada, ou que nunca chegam a explicar praticamente nada, como Lost, Dark vai-nos revelando novos factos em cada episódio, quase de forma alucinante, até ao culminar de um final que não é totalmente inesperado, mas demonstra, sem dúvida, uma grande capacidade de organização.

Em vez de prestar homenagem a tudo aquilo que já vimos 500 vezes, como Stranger Things faz, Dark cria novo conteúdo, constrói e deixa um legado importante na ficção actual. Atenção, não estamos perante a série mais original e criativa de sempre, mas a forma como a narrativa é construída e a solidez que apresenta nas interpretações, na história e no seu desenvolvimento, faz-nos sentir dentro de um universo totalmente novo, enquanto noutras séries do género sentimos que já estivemos naquela situação, naquele local, com aqueles personagens.

De um ponto de vista mais detalhado, é curioso ver as inúmeras semelhanças e alegorias com a saga “Dark Tower”, de Stephen King, desde [SPOILERS] as torres nucleares, a essência das crianças para criar uma energia para ser usada para algo, o personagem de Noah (igual a Walter, o ‘Man in Black’ de Dark Tower), realidades paralelas e viagens no tempo através de uma porta, e a importância de certos números. Em termos cronológicos, as três linhas temporais principais (tal como no segundo livro da saga), e uma quarta que se torna a principal (a realidade do Roland vs o final da série Dark), e as constantes referências a tick tock da personagem Hegle (tick tock man na saga Dark Tower).

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