“A Travessia de Benjamin”, o equilíbrio quase perfeito de Jay Parini

por Mário Rufino,    22 Julho, 2019
“A Travessia de Benjamin”, o equilíbrio quase perfeito de Jay Parini
Jay Parini
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As teorias de Walter Benjamin são substratas da história em “A Travessia de Benjamin” (Elsinore). Jay Parini, autor de “A Última Estação”, calibrou o mecanismo literário quase na perfeição.

Entre diferentes pontos de vista e palavras do próprio Walter Benjamin, a prosa ficcional apresenta-se próxima do homem e da sua obra sem cair em opacidade teórica. Não estamos a falar de um ensaio biográfico escrito pelo autor de biografias de Steinbeck, Frost ou Faulkner. Parini ficciona. O livro não é uma biografia de Walter Benjamin nem tem o objectivo de encerrar o tema. A ficção abre outras portas, liberta-se do factual e movimenta-se por zonas menos frequentadas pelos ensaístas. Uma mentira em forma literária? É antes uma verdade falsificada capaz de aproximar o leitor do personagem real que foi ficcionado.

Capa do livro

O romancista seguiu os acontecimentos verídicos que moldaram a vivência, o corpo e as ideias de Walter Benjamin. Os nomes, as datas e as localidades quiseram-se exactos e representantes desses acontecimentos.
A investigação para a construção deste romance incluiu entrevista a Lisa Fittko, uma das vozes deste mosaico narrativo, entrevistas a amigos e antigos alunos de Scholem, companhia do leitor na visita ao túmulo de Benjamin, além do próprio interesse no corpus teórico do filósofo. Outras fontes foram também importantes para a feitura do romance.  As cartas do próprio Benjamin- com edição de Adorno e Scholem-, e as críticas de Susan Sontag, Hannah Arendt entre diversos autores são a corrente interna do fluxo que nos leva até à saudade de Scholem, quando visita a campa do amigo que se suicidou com comprimidos. As memórias de Asja Lacis, uma obsessão de Walter Benjamin, seriam fonte importante. Em “Rua de Sentido Único” [Gesammelte Shriften”] está escrito:

“Esta rua chama-se/ Rua Asja Lacis/ em homenagem àquela que/ como um engenheiro/ a abriu no corpo/ do autor deste livro.

Mas foi, principalmente, o próprio autor nascido em Berlim a suscitar o interesse do romancista norte-americano. “Iluminations” foi o ponto de partida. A voz destes ensaios “inimaginavelmente comprimidos, enigmáticos, sugestivos” acompanhou Parini durante anos. As memórias de Gershom Scholem, “Walter Benjamin: The Story of a Friendship”, e as memórias de Lisa Fittko, com narração das experiências na França em plena Guerra Mundial e a viagem com Benjamin e os Gurlands pelos caminhos agrestes dos Pirenéus, são essenciais na descodificação do Benjamin mundano e pensador.

Filho de um comerciante, o berlinense Walter Benjamin, nascido a 15 de Julho de 1892, viria a estudar Filosofia, Literatura Alemã e Psicologia na Universidade de Berlim e na de Berna. A primeira obra destinada a publicação, “Tableaux Parisiens de Baudelaire” incluía um prefácio sobre “A Tarefa do Tradutor”, que demonstra interesse pela filosofia da linguagem e pela teoria da arte. Os ensaios sobre literatura, escritos entre 1914 e 1936, compreendem Kafka, o surrealismo, Proust, o teatro épico de Brecht, a poesia de Holderlin e “As Afinidades Electivas”, romance de Goethe, entre outros temas.

Jay Parini / Fotografia de Oliver Parini

Caminhar com o personagem não implica miopia, mesmo que ele tenha precisado de grossas lentes para contrariar a pouca capacidade dos seus olhos. A mente alcançava o que as muitas dioptrias impediam de ver. Caminhar com Benjamin é acrescentar conhecimento sobre os temas mencionados, é testemunhar sociedades em ebulição, invadidas ou prestes a ser pelas tropas alemãs. Hitler assombrava os europeus com especial obsessão pelos judeus, como Walter Benjamin.

Ele e a sua irmã fugiram de uma Paris cercada pelos alemães em direcção a um território que lhes garantisse liberdade. Espanha, Portugal, Cuba e até Marrocos eram opções.
Na história de Parini, Benjamin nunca larga uma mala preta com vários inéditos e algumas páginas de uma obra sobre as arcadas, que ele vê como sua obra-prima. A penúria faz sombra sobre a sua existência, a indisciplina e a fraca saúde impedem um ritmo de trabalho que lhe proporcione mais conforto. Esta conjugação negativa desenharia o seu destino.

“Benjamin fora morto por Hitler, e por Karl Marx. Fora morto por Asja Lacis, que nunca o amara realmente, e, sim, por Dora, a sua mulher, que nunca aprendera a amá-lo convenientemente. Fora morto, sem dúvida nenhuma, pelo Anjo da História, que nunca conseguiu satisfazer. De um modo ainda mais óbvio, foi morto pelo Tempo, que muitas vezes aguarda, provocador, nos bastidores, mas que surge sempre em palco (…)” 

Benjamin é um pensador com afinidades com Adorno, que o ajuda pessoalmente, enamorado por Baudelaire, atraído por Goethe, e próximo de Brecht. O confronto de ideias entre os vários autores e diferentes correntes ideológicas é bem doseado por Parini. Algo mais profundo e ostensivo tornaria o romance fastidioso e pouco fluido. “A Travessia de Benjamin” é também a travessia do leitor pelas danações físicas e obsessões individuais de um homem, como o entusiasmo pelo sexo. Para Benjamin, era impossível viver uma vida sem Eros. A sua obsessão por Asja- obsessão nunca satisfeita- levava-o a procurar noutras mulheres a sua imagem. O  aspecto desleixado não era sintoma de pouca libido.

“Tinha pago pelos serviços de dúzias de prostitutas, apertando os olhos com força no momento do orgasmo, inventando Asja uma e outra vez. Sentira tanto a sua falta. A sua vida, sem ela, era vazia.”

Adorno viria a afirmar que nenhum pensamento deste homem inesgotável se assemelhava a algo sem mistura. Tudo na vida influenciou o seu pensamento.  Neste entrelaçar de características de diversas índoles, Parini consegue não afastar o leitor já por si isolado. De acordo com o filósofo aqui ficcionado, “Uma pessoa que escuta uma história está na companhia de um contador de histórias; mesmo alguém que leia uma história em voz alta partilha este companheirismo. O leitor de um romance, contudo, está isolado, mais do que qualquer outro leitor. Na sua solidão, os leitores de romances apoderam-se do material mais zelosamente do que lhes é apresentado como um fogo que devora os troncos numa lareira”.

A vida de Walter Benjamin foi esmiuçada e romanceada para usufruto do leitor. É um caminho aprazível e muito bem desenhado pela mão segura de Parini.

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