“A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” sonha a liberdade para Angola

por Cátia Vieira,    18 Setembro, 2017
“A Sociedade dos Sonhadores Involuntários” sonha a liberdade para Angola
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Em A Sociedade dos Sonhadores Involuntáriosde José Eduardo Agualusa, todos os personagens se ligam ao sonho. Acima de tudo, todos eles sonham um novo futuro para Angola. Assim, o décimo quarto romance do escritor angolano é uma fábula que revela o contexto político do país africano, criticando o status quo, que se funda em corrupção, desigualdade e ausência de liberdade. Inspirado nos dezassete activistas angolanos detidos – entre eles, Luaty Beirão -, Agualusa narra um combate político que consegue derrubar o governo de Angola. Afinal, como evidencia na epígrafe: «o real dá-[lhe] asma» (E.M. Cioran).

O protagonista do romance é Daniel Benchimol, um jornalista que se especializou em desaparecimentos de pessoas, verbas e objectos. Sonha a vida inteira de pessoas que existem, mas ainda não conhece. Ao longo da narrativa, Daniel encontrar-se-á constantemente numa espécie de entre-lugar: o seu casamento com Lucrécia termina por criticar «os erros do Governo porque sonhava com um país melhor» e no momento do combate tende a evidenciar cobardia. Nos instantes em que renega o medo, chama-se Demónio Benchimol e «sofre surtos de bravura».

Daniel não será o único narrador da obra. Em alguns momentos, far-se-á ouvir a voz de Hossi Kaley, o proprietário do Hotel Arco-Íris. Ao contrário de Benchimol que defende um combate pacífico, Hossi apregoa o grito da revolta e recusa-se a sucumbir ao medo, porque «O pacifismo, meu irmão, é como as sereias: não respira fora do mar da fantasia, não se dá bem com a realidade». E se Daniel sonha a vida das pessoas, o hoteleiro vagueia pelos sonhos dos outros.

O que unirá ambos os personagens ao longo da narrativa será a actividade onírica, o combate político e o grupo de jovens activistas detido por desrespeitarem o Presidente de Angola. O país africano da obra de Agualusa caracteriza-se por uma política antidemocrática, que cultiva o medo e privilegia somente um restrito grupo de cidadãos. Porque haveria Angola se de reger por uma democracia se «Deus fez os leões e fez as gazelas, e fez as gazelas para que os leões as comessem. [Ou seja,] Deus não é democrático»? Para destronar o Presidente angolano, sete jovens revoltam-se contra o sistema político, social e económico do país, acabando detidos. Entre eles, encontram-se Karinguiri – filha de Daniel Benchimol – e Sabino Kaley, electricista e o sobrinho mais velho de Hossi. A questão coloca-se: «Como é que vocês podem ter medo de um regime que estremece quando sete jovens sem poder algum lhe levantam a voz»?

O mais recente romance de José Eduardo Agualusa inquieta o leitor e obriga-o a um confronto com as suas ideias, descortinando novos saberes entre conteúdos pré-concebidos. Pensemos, por exemplo, o instante em que Hossi revela que Adolf Hitler e Mahatma Gandhi eram vegetarianos:

«- Hitler era vegetariano. Gandhi também era vegetariano. Eu não sou nem Hitler nem Gandhi e, como eles, não como carne.
– Porque não come carne?
– Porque é que a sua filha não come carne?
– Por questões éticas, suponho. Provavelmente também por questões de saúde.
– E Hitler?
– Não sei. Por questões de saúde?
– Por questões de saúde também. Mas não só. Ele gostava de animais. O regime nazi criou diversas leis para a proteção de animais. Hitler queria acabar com os matadouros e com o consumo de carne.
– Não sabia.
– Não, claro que não sabia. As pessoas preferem não saber. É difícil admitir que um homem que fez tanto mal à Humanidade fosse sensível ao sofrimento dos animais. É fácil aceitar que Gandhi fosse vegetariano e gostasse de animais. Mas custa-nos que Hitler não fosse completamente mau.»

Além do questionamento, Agualusa revela coragem em contar uma Angola antidemocrática, decalcando o regime vigente e os acontecimentos que se têm desenrolado no país africano. É uma narrativa que cresce na simplicidade e na prosa poética e delicada que os escritores africanos nos têm habituado. Ademais, o misticismo – que também encontramos, por exemplo, no autor moçambicano Mia Couto – assume-se como um dos motes da trama.

Ainda que A Sociedade dos Sonhadores Involuntários tenha cumprido o seu propósito, depois de nos fazer questionar o cinza que impera entre o preto e o branco, Agualusa escreveu uma luta política um tanto cor-de-rosa e maniqueísta, criando uma segregação óbviaestereotipação nos grupos sociais, em alguns personagens e nos próprios eventos. Assim, vamos sentindo o fulgor da leitura esvanecer, levando-nos a pedir que o próximo romance de José Eduardo Agualusa nos traga a magistralidade de Nação Crioula (1997).

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