A reencarnação de TORRES em ‘Three Futures’

por Sara Miguel Dias,    6 Dezembro, 2017
A reencarnação de TORRES em ‘Three Futures’
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Mackenzie Scott, musicalmente conhecida por TORRES, está ainda na flor da idade e celebra já o lançamento do seu terceiro LP. Num primeiro álbum homónimo lançado em 2013, Scott estabeleceu-se tanto pelas intrincadas linhas de guitarra e volátil voz, como pelas articuladas e complexas palavras da sua lírica. O sucessor Sprinter não se afastou dos mesmos traços, reiterando sobretudo a intensidade da mensagem, com temas tais como Strange Hellos”, onde pela primeira vez se escuta alguma hostilidade e penumbra na abordagem vocal.

Ora, Three Futures, editado no fim do passado trimestre pela 4AD, ainda que mantenha esta crescente afirmação da cantautora, reinventa-se sonicamente. Há uma translação dos elementos de rock tradicional para uma fusão com instrumentais eletrónicos, surgindo um electro rock claramente influenciado por St. Vincent – uma das principais inspirações musicais de Scott. As guitarras mantêm-se dissonantes e tornam-se algo psicadélicas, dependendo mais do que nunca da reverberação e distorção; acompanhadas de sintetizadores, criam melodias para completar os ritmos programados carregados.

Não tentando disfarçar a sua intenção de integrar novos elementos, Scott lança como singles “Skim” e “Three Futures”: o primeiro frontal, com os sintetizadores a soar a sopros graves antes da guitarra estridente, e o segundo um passivo e moroso retrato de uma relação, que analisando de perto, e tendo em conta o epicentro estilístico deste álbum, pode ser utilizada para referenciar a aceitação das suas diversas personificações enquanto criatura viva.

Frame do videoclipe de “Skim”.

Há portanto uma concisão temática comum às músicas. Não é novidade para quem atenta ao reportório da cantora que a consciencialização do seu lugar no mundo tem sido incessante nos seus relatos, e é em Three Futures que nos apresenta os frutos da sua procura do “eu”. Aquilo a que a própria se refere como “a celebração do corpo” e do seu lugar enquanto ser são o foco principal do álbum. Na capa apresenta-se fronte e centro, sentada num sofá, ocupando todo o espaço que é seu por direito, impondo a sua posição e declarando a sua presenta neste universo. TORRES consegue tornar cerebral a matéria corpórea e traduzir reflexões eloquentemente, sendo visual nas suas descrições sem nunca cair quer em vulgaridades, quer em presunções. Em “Righteous Woman” joga com isso mesmo, satirizando os seus maneirismos “I am not a rightgeous woman / I’m more of an ass man”, para em seguida se justificar com “Just know that I am dealing / With a flesh that’s far too willing”.

A articulação poética de Scott, que se faz sentir ao longo de todas as músicas do LP, ganha especial força no tema que o encerra, um em que a melodia é um mero veículo para embalar a mensagem. É um hino de celebração da sua vida humana, que Scott partilha com a mãe, a quem dá créditos de coautora, entoando “To be given this body / Is the greatest gift”; o seu conflito perante a fisicalidade da vida surge recorrendo à metáfora utilizada por Sylvia Plath em The Bell Jar, onde a doença mental é referenciada enquanto uma jarra que isola a protagonista do mundo que a rodeia. Sendo que Plath acaba o livro com uma comparação da protagonista a um nado-vivo, Scott reescreve-o sob os seus olhos, concluindo que os momentos de felicidade justificam a dor pela qual se tem de passar.

Tomando um outro rumo em “Helen in the Woods”, TORRES transfigura-se. Neste tema é explorada a obsessão, a qual conseguiu transpor para todos os elementos que o compõem. Dos traços graves e urgentes dos sintetizadores e drum pads, ao próprio título de “perdida na floresta”, é no entanto na sua voz que reside a maior força da música. Scott soa a desespero, como que consumida por algo, tal como a personagem que relata; também em “Concrete Ganesha” o faz, mas neste o que se destaca é a inquietação do riff de guitarra que se sobrepõe aos sintetizadores. Em momentos chega a assemelhar-se a sirenes, noutros a telefones. São duas canções de entrega total à visão que se comprometera a transmitir, não deixando espaço para duvidar do potencial que tem vindo a semear desde o homónimo.

É extremamente satisfatório assistir a uma evolução estilística tão bem conseguida e com arestas tão bem limadas como aquela que o curto, mas prolífero percurso de TORRES sugere. Neste, a maturidade triunfa, a par da perceção do ser, e o que antes eram lamurias de insegurança, são agora gritos de assertividade.

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