A realidade contém spoilers

por Comunidade Cultura e Arte,    7 Março, 2019
A realidade contém spoilers
Ilustração de Manshen Lo
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A seguinte crónica baseia-se em experiências pessoais e conhecimento empírico, já que não existem estatísticas relativas aos níveis de audiência portuguesa de 2018 na plataforma Netflix.

Estou viciado em documentários. É oficial. Ao ponto de ficar nervoso com o que vai acontecer, como se de uma série de ficção se tratasse, mesmo sabendo à priori que não há qualquer plot twist que mude o final, pois no fundo, é a realidade. E como eu, acredito que haja cada vez mais casos por esse mundo fora. Esta tendência recente do meu apego a este género, que a Netflix tornou sexy, deve-se a vários fatores que não são de agora.

No início dos anos 2000, o realizador norte americano Michael Moore foi quem colocou o género na moda, dominando o circuito comercial deste nicho com os seus documentários incómodos (sobretudo para a América, para gáudio dos Europeus) cuja edição ritmada mexia com o espectador. Filmes como “Bowling for Columbine”, “Fahrenheit 9/11” ou até “Sicko” tiveram sucesso no seu tom interventivo e a influenciar a opinião pública pela forma como tratava de questões sociais e políticas. Na mesma altura, surgiu “Super Size Me” de Morgan Spurlock que nos mostrou, de uma maneira chocante, o perigo do fast food na nossa saúde e como o nosso futuro estava a moldar-se de forma dramática.

A meio da década, este género parece perder força, curiosamente num período que coincidiu com a ascensão de um novo universo: o dos super-heróis. O primeiro filme da 1.ª fase Marvel Studios foi em 2008 com “Iron Man”. A partir daí, atrevo-me a dizer que o grande público, no geral, perdeu interesse na realidade enquanto cinema e perdeu-se nesta fantasia suprema durante dez anos, até aos dias de hoje. Isto porque o cinema continua a ser, para boa parte de nós, um escape para a realidade e este universo encarna essa premissa com afinco. Não significa que nesta fase não houvesse uma aposta no género documental, mas até temas que podiam estar mais integrados neste formato como o terrorismo, estavam a ser retratados em filmes de ação como The Hurt Locker, Zero Dark Thirty ou Argo.

Há cerca de três anos atrás, pelo menos em Portugal, vários outros pequenos fenómenos começaram a entrar na equação: apesar dos números astronómicos de bilheteiras, os filmes de super-heróis entraram numa fase de desgaste. Percebe-se por algumas apostas estranhas como Venom ou Suicide Squad, a continuação extenuante dos filmes dos X-Men, os constantes reboots da personagem do Homem-Aranha ou o fracasso que foi Justice League, para constatar que o grande público já começa a estar farto. Eu, como fanático de banda desenhada, das sete películas que estrearam em solo nacional, fui ver duas ao cinema e nem em casa consumi tudo o que saiu.

Ao mesmo tempo, a expressão “netflix and chill” começou a ser moda. O streaming (que já não havia pachorra para fazer download de filmes) também entrou nos hábitos dos consumidores. E a Netflix invadiu as nossas casas e até o cinema. A toda esta conjuntura, junta-se outro fator, a saúde. A preocupação com a alimentação e o exercício está na ordem do dia. E assim, voltamos ao formato que aposta na realidade: documentários como Cowspiracy ou What the Health foram muito falados e partilhados. Se analisarmos as séries mais vistas na Netflix em 2018 (aqui na Comunidade Cultura e Arte), no topo temos Making a Murderer e Last Chance U, séries documentais.

O que partilho com mais entusiasmo com os amigos e família têm sido precisamente documentários como Wild Wild Country, Heal, Free Solo ou Three Identical Strangers. E, tal e qual como num filme de ficção, recuso-me a contar demasiado, para não spoilar e estragar a experiência.

Numa era digital e de falta de interação social, parece que queremos, nos momentos “livres”, voltar a ligar-nos com a nossa realidade ou com outras realidades que desconhecíamos que são tão ou mais fascinantes que a ficção. E isto pode ser o começo de uma nova era cinematográfica.

Crónica de Miguel Peres
Miguel Peres é um rapaz baixinho e criativo com várias vidas: trabalha em comunicação, é copywriter freelancer e argumentista de banda desenhada. É um apaixonado pela sua mulher, por cinema, comida e BD. Tem 2 livros publicados, diversas curtas publicadas em antologias internacionais, um selo editorial chamado Bicho.

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