A Queima das Fitas do Porto “pôs-se a jeito”

por Sofia Matos Silva,    14 Maio, 2019
A Queima das Fitas do Porto “pôs-se a jeito”
Frame de vídeo do Jornal de Notícias
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Vamos falar sobre a Queima das Fitas do Porto. Existem imensas palavras para a caraterizar. Tradição, academismo, nostalgia, amizade, emoção, memórias, convívio, juventude, diversão, álcool, loucuras… e exageros.

A Semana Académica é o negro das capas e é o arco íris pelos Clérigos abaixo. São as cartolas dos finalistas, os sorrisos e as lágrimas dos estudantes, tudo ao mesmo tempo. A Semana Académica é também os concertos no Queimódromo, o Quim às terças e o techno às quintas, a busca pela barraca mais criativa ou as bebidas mais baratas, o dançar até às cinco na tenda e ver o nascer do dia na praia de Matosinhos. A Semana Académica é boa para criar memórias, mas não sei se este ano serão apenas das boas.

As barracas

Neste tipo de eventos reina o sexismo. Os responsáveis tentam negá-lo, mas não há como argumentar quando certas barraquinhas têm nomes como “DizQueM’amas”, “Mamma Mi(nh)a”, “NEEQona”, “BananaPesseGú”, “Porcahontas”, “Meu Pau Txi Ama” ou “Tas’Co Pito Aos Saltos”. A decoração das barracas segue o mesmo tema, numa competição informal para decidir qual a mais sexualmente explícita. Existem barracas que já são conhecidas por dar bebidas grátis em troca de beijos ou mostrar seios. Para quem nunca foi à Queima, isto é apenas uma piada ou um mito urbano. Para quem lá vai, sabe que é uma prática corrente. O que se passa nesta semana são assuntos que se sabem, mas dos quais não se fala a sério. Até agora.

Os dois lados de um jogo

Vamos falar sobre dois dos lados de um jogo que não devia existir. Há uma quantidade absurda de raparigas por este país fora que tem medo de sair sozinha à noite. Absurda, porque isto já não devia ser uma realidade. Mas é a realidade que temos. Em eventos como as Queimas, é impensável uma mulher ficar sozinha numa fila, andar sozinha num transporte público ou ir a uma casa de banho sozinha. Os piropos, os toques e as “ofertas” são uma constante. No Porto, criou-se o Ponto Lilás, um espaço dentro do recinto que tem o objetivo de ajudar a evitar certas situações. É um passo em frente, mas é igualmente um passo para trás, na medida que a sociedade parece evoluir, mas à velocidade de caracol. Ser necessária a criação de um espaço para as pessoas poderem fugir é bastante triste. No outro extremo temos as “corajosas” ou “atiradiças”, as que não têm medo de nada e não se importam de se pôr em situações desconfortáveis para poupar umas moedas – sóbrias ou embriagadas, pressionadas ou não. No Queimódromo, ninguém paga um euro por um shot. Esse é o preço afixado; na prática, é tudo negociado. Quem está nas barraquinhas pergunta quantos, de que bebida e por que preço. Ambas as partes regateiam até se chegar a um acordo. É absolutamente desnecessário cumprir “desafios”. Muito menos os que são propostos.

Fotografia de Sofia Matos Silva / CCA

Brinquedos

É nisso que as mulheres se tornam ao cederem a estas práticas. Objetos para manusear, brincar, com o fim de gerar diversão. Enquanto umas lutam contra os abusos, outras simulam sexo oral para se embriagarem. Estando previamente embriagadas, isto assemelha-se a uma bola de neve ou a um ouroboro distorcido. É certo que há uma grande diferença entre uma coisa e outra: o consentimento. Mas têm aspetos em comum. Trata-se de objetificação, trata-se da sujeição do feminino ao masculino. Séculos de reivindicações e ativismo, para dar nisto? Para nem falar do conceito de “beijo lésbico”. Tanto se tem alcançado no domínio do fim da discriminação à comunidade LGBT+, para depois se incentivarem situações que se aproximam da pornografia em troco de uns centilitros de álcool.

Redes sociais

Vamos falar sobre redes sociais. Estamos no século XXI, ano 2019. Já nada se faz sem ser publicado para o mundo ver. Os jovens – não apenas, mas maioritariamente – escrevem tudo o que lhes vem à cabeça no Twitter e no Facebook, e fotografam e filmam tudo o que lhes passa à frente dos olhos para o Instagram e para o Snapchat. A privacidade nunca foi tão precária. Não são precisas agências de espionagem; espiamo-nos a nós próprios e uns aos outros e tornamos os resultados públicos. Beijos entre amigas para proveito dos “machos” que olham ou simulação de atos sexuais (o “desafio calippo”, por exemplo) para obtenção de bebidas são situações degradantes. Ser tudo filmado e publicado nas redes sociais? É estupidez pura. Para todos os envolvidos. Mesmo que a captação de imagem seja feita com consentimento, a sua divulgação pública sem autorização é crime. Ainda para mais a divulgação de vídeos deste caráter. E se as barraquinhas são de condenar por partilharem este tipo de vídeos, também o é quem os partilha nas redes sociais ou na Internet.

O que acontece na Queima das Fitas – independentemente da cidade e das situações em concreto, iguais ou semelhantes – não fica na Queima das Fitas e deve ser discutido por todos.

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