A propósito da série documental da RTP: ‘2077 – 10 segundos para o futuro’

por Guilherme Gomes,    3 Janeiro, 2018
A propósito da série documental da RTP: ‘2077 – 10 segundos para o futuro’
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Vi, um destes dias, um episódio da série documental 2077 – 10 Segundos Para o Futuro na RTP1. Um trabalho tão cuidado quanto inquietante sobre o que nos espera em sessenta anos – e mais além. As consequências da consciência que vamos tomando do que nos rodeia, da evolução tecnológica que vai conduzindo ao conforto, à garantia de sobrevivência (sobre-vivência), respondendo à questão mesma da Eternidade, e mais que a Eternidade, a Juventude Eterna. O movimento tecnológico parece encaminhar-se para aí, confiante de que para aí quer a Humanidade caminhar. E não é difícil reconhecer e ambicionar a segurança prometida, quando diagnósticos se prevêem tão rápidos e eficazes que nada, em bom rigor – e à distância –, parece fazer-nos frente. Debaixo do braço protector da tecnologia poderemos dormir descansados, sem que a morte se apresente como um abismo.

Aconselhando, desde já, a série como um catalisador de pensamento, adianto três pontos de pensamento que me ocorreram – procurando em quem leia isto a possibilidade de um diálogo:

A mudança no pensamento sobre a morte: se controlarmos todo o nosso contexto ao ponto de fazer a tão ambicionada finta à derradeira ceifeira, imagino que talvez se reformulem os pensamentos sobre a morte. Certo é que a tecnologia terá o seu preço – isto é, é possível que o acesso a estas ferramentas seja restrito, e que toda esta realidade seja inacessível à maior parte da população – mas a promessa de eternidade coloca numa posição facultativa a morte. Porque morrer, se se pode evitá-lo? Escolhendo sucumbir à ordem natural das coisas, havendo a possibilidade de a contrariar, estamos a ceder a uma espécie de suicídio? O grande mistério da morte será solucionado, não porque chega a hora de o solucionar (supondo que hora exista, e os erros não), mas porque finalmente optamos por fazê-lo.

Existencialismo: projecta-se uma substituição. Os humanos não terão que trabalhar, cumprindo-se, por fim, o desejo Wagneriano de deixar às máquinas o trabalho, a fim de libertar os braços dos humanos para a criação. Faremos finalmente o que Agostinho da Silva, com o seu modo provocador, dizia: todos nascemos poetas, ninguém nasceu para trabalhar. O caminho da tecnologia, dirigindo-se para o Futuro, parece conduzir-nos (em jeito de paradoxo) para o lugar do primeiro homem, parece-me. Se se imaginar, como fez Camus, que o primeiro homem aparece, simplesmente, de um momento para o outro, podemos deduzir que, olhando em volta, perguntará: e agora que faço? Não há uma razão para a sua existência – senão, eventualmente, evitar morrer. Evoluindo até ao ponto em que as máquinas no-lo garantam, falo da existência, confrontamo-nos com a necessidade de reinventar o sentido da vida. Outras formas arranjaremos, com certeza, de lidar com a sobrevivência – e se não biológica, outra forma de a por em causa existirá.

A questão, levantada no documentário, de como lidaremos com uma entidade intelectualmente superior a nós. Parece novidade para a nossa espécie. Terá consequências numa identidade colectiva? Lidaremos bem com a humildade de não sermos a criatura (biológica ou não) mais inteligente a pisar este chão? (é curioso que quando Deep Blue venceu Garry Kasparov, o campeão (humano) mundial acusou a máquina de fazer batota, pedindo uma repetição da partida.)

Sei pouco sobre o que falo, mas da minha sala de estar, aos primeiros dias de 2018, anseio esta evolução. E é novidade, em mim, já que sempre torci o nariz à evolução tecnológica, temendo que nos torne cada vez menos humanos. Na verdade, parece-me que a mesma evolução nos conduz no sentido oposto: sinto uma ânsia de sair do hiato humanístico que vivemos, deixar que se preocupe a tecnologia, e os seus agentes (mecânicos), com a produtividade. Sinto a iminência de uma mudança radical na nossa forma de pensar, a possibilidade de um regresso às questões fundamentais, e penso no desconcertante tempo de transição que habitamos com um entusiasmo, um fascínio e uma admiração enormes. Estou confiante de que a Inteligência Artificial será capaz de tão boas ideias como a Natural, apesar de tudo será capaz de absorver o que toda a Filosofia que os Humanos escreveram deixou impresso nas páginas dos séculos: terá na sua memória tratados de Ética, conceitos como a Comunidade, o Altruísmo e a Solidariedade. Esperemos que seja inteligente o suficiente para não ceder à esperteza de subverter estes conceitos.

Do castelo de Penha Garcia, olhamos para um lado e vemos o verde acidentado da Beira Baixa, olhamos para o outro e apresenta-se-nos a planície dourada do Alto Alentejo. É um castelo numa fronteira muito definida. Gosto de pensar que, apesar de tudo, não abdicaremos desta natureza, do mundo; gosto de pensar que toda esta evolução nos não afastará ainda mais dos penhascos, do vento que varre um vale, do gelado curso de um riacho. Estamos no castelo de Penha Garcia, e não sabemos exactamente para onde olhar.

O primeiro episódio da série está na RTP Play, e pode ser visto aqui

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