A presença lírica de Natália Correia na sociedade portuguesa

por Lucas Brandão,    3 Dezembro, 2019
A presença lírica de Natália Correia na sociedade portuguesa
Natália Correia / Ilustração de Marta Nunes – CCA (@martanunesilustra)
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Natália Correia foi um das autoras de referência de um século XX português em ebulição e em constante transformação social. De raízes açorianas, não demorou a impor-se no continente e, através da sua poesia e ficção, deixar um repertório de referência da literatura portuguesa, traduzido em vários idiomas. Como a literatura não poderia suceder-se sem a devida presença na sociedade, envolveu-se na política e foi deputada durante mais de uma década. Bateu-se pela valorização da cultura e do património, com um forte sentido humanitário e feminista (fundou a Frente Nacional para a Defesa da Cultura), sem deixar de acolher verdadeiras tertúlias culturais e artísticas na sua casa e, depois, no famoso bar Botequim.

Natália de Oliveira Correia nasceu a 13 de setembro de 1923 na ilha de São Miguel, no arquipélago dos Açores. Ainda criança, o seu pai emigrou para o Brasil, o que a levou com a mãe e a irmã a Lisboa. A morte da sua mãe, em 1956, seria um dos fatores que eternizaria a saudade dos Açores, saudosismo que catapultou o valor da sua poesia. A sua carreira como poetisa, como sempre gostou de se definir, valorizando a força e o engenho do feminino, começou bem cedo, ainda nas primeiras aventuras na literatura infantil (“As Aventuras de um Pequeno Herói”, de 1946, é a sua primeira obra). Poetisa mas sempre polivalente naquilo que escrevia, já que se desdobrou entre os romances, os ensaios e as peças teatrais, sendo, de igual modo, editora e coordenadora da Editora Arcádia Acabou por ver esta carreira a ser-lhe especialmente feliz quando chegou à televisão, criando e apresentando o programa “Mátria” – um programa de caráter feminista, ou matricista, que a própria definia como uma forma de sublinhar a liberdade íntima da mulher e o seu papel na definição do que é a humanidade. Isto porque o jornalismo foi o seu sustento inicial, colaborando no Rádio Clube Português e no jornal Sol.

Acho que não vale a pena a mulher libertar-se para imitar os padrões patristas que nos têm regido até hoje. Ou valerá a pena, no aspecto da realização pessoal, mas não é isso que vem modificar o mundo, que vem dar um novo rumo às sociedades, que vem revitalizar a vida. Ora bem, a mulher deve seguir as suas próprias tendências culturais, que estão intimamente ligadas ao paradigma da Grande Mãe, que é a grande reserva, a eterna reserva da Natureza, precisamente para os impor ao mundo ou pelo menos para os introduzir no ritmo das sociedades como uma saída indispensável para os graves problemas que temos e que foram criados pelas racionalidades masculinas. É no paradigma da Grande Mãe que vejo a fonte cultural da mulher; por isso lhe chamo matrismo e não feminismo.

Natália Correia numa entrevista dada em 1983, respondendo a uma questão sobre o que é o matrismo.

Desenvolvendo o seu trabalho num período fustigado pelo Estado Novo, viu-se envolvida nos movimentos anti-regime, fazendo parte da falange de apoio à candidatura de Humberto Delgado à presidência e entrando na Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (1969), encabeçada por Mário Soares. Isto sem antes ter sido presa, no ano de 1966, após a publicação da controversa “Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica” (1959), considerada escandalosa pela censura; e processada por viabilizar a publicação das célebres “Novas Cartas Portuguesas”. Já após a Revolução de Abril, muitas obras censuradas depois, e após uma fugaz presença no Partido Socialista, entraria nos quadros do Partido Popular Democrático (atual Partido Social Democrata), na altura liderado por Francisco de Sá Carneiro, amigo pessoal de Natália. No entanto, e já como deputada, viria a separar-se do PSD, permanecendo como deputada independente, não se identificando com o crescente conservadorismo do partido e movida, sobretudo, pelas causas da Declaração Universal dos Direitos Humanos e pelo papel fundamental a assumir pela cultura na sociedade.

Enquanto mantinha uma vida política e literária ativa, ao lado da sua amiga Isabel Meireles, abriu o bar Botequim, que viu receber figuras importantes e alguns dos mais notáveis intelectuais portugueses. Neste lote, incluem-se António Sérgio, Mário Cesariny, David Mourão-Ferreira, Almada Negreiros, Ary dos Santos ou até Amália Rodrigues, almas criativas e associadas ao surrealismo, mas também ao romantismo, contra o comodismo neorrealista e o moralismo vigente do Estado Novo. Foram, também eles, parte do grupo de amigos que Natália fazia questão de reunir para tertúlias culturais e artísticas e com quem trabalhou na escrita e declamação de poesia (ouça-se “Autogénese”, datada de 1968). A verdade, porém, é que as suas transformações conforme a idade e a maturidade foram ampliando e a sua crítica social e ao funcionamento do esqueleto político e social foi tendo um tom de voz cada vez mais crítico. A integração na Comunidade Europeia acabou por contribuir para o seu desalento, vendo as portas fechadas à possibilidade de um país mais progressista e capaz de se cumprir nas promessas que o 25 de abril estabeleceu. A portugalidade era a única coisa que via consigo a transitar pela passagem dos anos, mas era o desencanto a nota dominante, especialmente com o neoliberalismo a solidificar-se. Esta que havia sido uma das razões primordiais do seu afastamento do PSD.

Isso não beliscou o seu estatuto na sociedade civil e artística, que se foi elevando até ser consagrada Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, em 1981, e, dez anos depois, Grande-Oficial da Ordem da Liberdade. Já a sua vida conjugal foi bastante turbulenta, tendo casado quatro vezes, embora se destacasse a sua grande paixão, o gerente do prestigiado Hotel do Império, Alfredo Luís Machado. A 16 de março de 1993, faleceria, na cidade de Lisboa, vitimada por um ataque cardíaco aos 69 anos. Parte importante do seu legado seria entregue às suas origens, aos Açores, para onde foi trasladada em 2015. Natália nunca havia esquecido as suas origens, especialmente na hora de lhe dar voz. Foi ela que escreveu o “Hino dos Açores”, no ano de 1979, numa necessidade vinda do governo regional da região encontrar uma letra que fosse consensual na sua população, representando os efetivos valores e identidade daquele povo.

O seu percurso bibliográfico foi profundamente amplo, passando por diferentes géneros e, nestes, tendo escrito em quantidade e qualidade. No entanto, a sua alma poética revelou-se, desde logo, na reunião da tradição lírica de gerações anteriores, como “Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses” (1970) e “Antologia da Poesia do Período Barroco” (1982) mostram; assim como os seus ensaios académicos, mostrando a sua vontade de conhecer e de partilhar esse conhecimento, independentemente de géneros e de padrões existentes. Na ficção, destaca-se “A Madona” (1968) e “A Ilha de Circe” (1983); na poesia, “Poemas” (1955), “Mátria” (1967)”, “O Dilúvio e a Pomba?” (1979), “Sonetos Românticos” (1990) e “O Sol nas Noites e o Luar nos Dias” (1993). O seu discurso lírico foi aquilo que procurou partilhar com as suas almas amigas, mostrando-se propensa a um discurso capaz de elevar e até de transcender a realidade comum e até banal, acompanhando o voo do bando de Açores que trazia no seu coração até à literatura que escreveu compulsivamente, com a mesma emotividade e força poética.

De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.

“O Dilúvio e a Pomba” (1979)

Uma força criativa que procurava encontrar-se num absoluto resultante de uma contradição formada por outras contradições, mas que só o amor incondicional e a força de espírito conseguiam manter vivos e abrir as portas para a libertação, libertação essa muito particular, destinada a uma alma que se queria ouvida universalmente. Havia, assim, uma dimensão bíblica na sua poesia, que a eternizou e que também foi frutificada pela paixão pelas raízes da poesia, nas suas expressões trovadorescas e também românticas e surrealistas. Em suma, era uma missão de problematizar o mundo e de interrogar a humanidade sobre o seu papel e sobre o seu alcance, até onde poderia ir através do potencial da poesia e da literatura; que poderia ser multiplicado nesse encontro com a Terra Mãe, nessa força matricial e feminina. Esta era uma resposta que procurava dar aos problemas e às vicissitudes que assinalava nas suas peças (“O Homúnculo” (1965) e “O Encoberto” (1969) são dois exemplos) e na sua ficção, que mostravam o seu fluxo de pensamento, fortemente sustentado naquilo que a sua vida política lhe permitiu conhecer e reconhecer.

Natália Correia foi, assim, uma voz imponente que partiu dos Açores sem nunca os ter abandonado. Por muito que a sua vida gravitasse em Lisboa, conseguiu impor-se de forma natural, com o poder da sua poesia e com a intervenção política que foi tendo numa oposição a um regime que a impedia de ser ela mesma. Numa fase em que a democracia havia chegado, nunca se acomodou e procurou sempre ser uma voz a favor do progresso, da cultura e da valorização do papel da mulher, alguém igual ao homem em direitos em deveres de forma incontestável e indelével. A sua escrita concretizou e formalizou esta sua convicção numa sociedade voltada para as promessas deixadas em abril e que acompanham o subconsciente português com um sabor a lembrança tímida e distante. Natália Correia permanece como uma caixa de ressonância que não as deixa cair no esquecimento, sendo que, para isso, se sustenta no que conseguiu transcender e, como tal, merecer.

Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!

“Inéditos” (1985/1990)”

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