A pintura “naive” de Henri Rousseau

por Lucas Brandão,    10 Maio, 2021
A pintura “naive” de Henri Rousseau
“Combat de tigre et de buffle” (c. 1908-09)
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Quando se aborda a pintura colorida e vistosa que resultou da herança do movimento impressionista, o nome do francês Henri Rousseau é dos primeiros que vem à tona. Rousseau, que não era mais do que um mero funcionário alfandegário (por isso passaria a ser conhecido como douanier), começou a pintar para lá dos seus quarenta anos e, no final destes, decidiu abdicar da sua profissão para se dedicar à pintura. Seria ridicularizado pela sua pintura nessa altura por parecer infantil e até primitiva, mas não era outro o objetivo do pintor. Essa opinião transformar-se-ia com o tempo, tornando-se numa de admiração e de apreço pelo seu trabalho e pela sua arte “naive”.

Henri Julien Félix Rousseau nasceu a 21 de maio de 1844, falecendo aos 56 anos. Nasceu na pequena vila de Laval, no oeste de França, numa família de operários. Foi cedo que começou a ser requisitado para o trabalho, no ramo da metalurgia, embora continuasse os seus estudos. Nesses seus estudos, foi descobrindo jeito para a pintura e para a música, embora não tivesse grande aptidão para as restantes áreas do saber. Ainda tentou estudar Direito, mas encontrou mais interesse no Exército, onde serviu durante quatro anos. Com a morte do seu pai, em 1868, Rousseau voltaria a casa para apoiar a sua mãe, agora viúva, assumindo um trabalho no governo.

Nesse mesmo ano, casar-se-ia com a filha do seu senhorio, com quem teria seis filhos, dos quais só um sobreviveria. Ficaria viúvo vinte anos depois, casando de novo, em 1898, com Josephine Noury. Três anos depois, passou a cobrador de impostos nos arredores de Paris, que exerceu até se reencontrar com a pintura e, nela, se entregar em plenitude. Assim foi, já no ano de 1886, quando começou a expor com regularidade no Salon des Indépendants, exposições das quais se notabilizou, desde logo, a pintura “Surpris!” (1891), onde representou uma selva na qual um tigre se apronta a atacar a sua presa na vastidão daquela vegetação, deixando para a imaginação aquilo que será a conclusão daquela movimentação. Foi uma pintura que só conheceu aquele palco, porque não seria aceite nas exposições da Académie, dada a ingenuidade do cenário retratado, apesar da técnica exigida para o desenho e respetiva pintura. Rousseau havia-se inspirado em literatura e em revistas, fascinado que era com os temas exóticos e com as gentes de lugares distantes daquela Europa já tão conhecida. Era um espírito que partilhava com os seus compatriotas, esse em relação ao indígena e a um quase terceiro mundo.

O seu cunho tinha sido deixado e Rousseau dedicou-se ao seu estúdio em Montparnasse, onde perdurou até ao fim da sua vida. Foi pintando conhecidos trabalhos, como “La Bohémienne Endormie” (1897), captando um leão ao redor de uma mulher que dorme ao luar num lugar deserto, ao lado de um cântaro vazio e do seu bandolim, enquadrado por um grupo de colinas à distância. Foi uma pintura que só seria descoberta já após a morte do artista, quando fora vendida a um mercador de carvão pérsico, colecionador de arte, que, por sua vez, venderia ao vendedor de arte Daniel-Henry Kahnweiler, depois de descoberta pelo crítico Louis Vauxcelles, até chegar ao seu último destino, o Museum of Modern Art. Outra pintura proeminente seria “Le Lion Ayant Faim sa Jette sur l’Antilope” (1905), onde, novamente num cenário de selva, e enquanto o Sol cai bem lá ao fundo, se assiste a um leão a caçar e a capturar um antílope. Ali escondidos entre os arbustos, estão outros animais daquele habitat, entre panteras, corujas e macacos. Exporia esta pintura no Salon d’Automne, de 1905, pintura essa inspirada num modelo tridimensional de animais montados e reproduzidos pelo Museu Nacional de História Natural francês.

“Le Lion Ayant Faim sa Jette sur l’Antilope” (1905)

O seu percurso pictórico influenciaria outro artista francês de nomeada, de seu nome Henri Matisse, e o seu movimento fauvista. Dois anos depois, comissionado pela mãe do também pintor Robert Delaunay, a Condessa de Delaunay, pintaria “La Charmeuse de Serpents” (1907), onde uma mulher toca uma flauta, ao luar, encantando um conjunto de serpentes que a ladeiam num ambiente selvagem. Novamente, a inspiração parte de revistas e das suas próprias visitas a jardins locais, nomeadamente o Jardin des Plantes, em Paris. Rousseau era, cada vez mais, uma parte notável daquele ambiente de efervescência artística de Paris, conhecendo o seu admirador Pablo Picasso, que lhe preparou um banquete, em 1908, em sua homenagem. Seria um evento em que se consumaria o repto de revolução artística, unindo diferentes artistas de diferentes proveniências e expressões, como Gertrude Stein, Guillaume Apollinaire, Max Jacob ou Juan Gris.

Divertia-se, em simultâneo, a tocar violino nas ruas, enquanto beneficiava da sua reforma, para além de ocupar o seu tempo em alguns trabalhos pontuais. No ano da sua morte, 1910, pintaria “Le Songe”, uma pintura muito criticada, mas também valorizada pelos vanguardistas. Representava, assim, a empregada polaca que Rousseau tinha em casa, Yadwigha, nua num ambiente selvagem, repleto pela folhagem e pela fauna, de flores de lótus cruzando-se com a emergência de animais um pouco por toda a tela. Na pintura, também consta um encantador de cobras a tocar a sua flauta, escondido por detrás destas plantas. Como sempre, a lua à distância, presente, iluminando o palco em plena Natureza. Pouco tempo depois, descobriria ter gangrena, resultante de uma inflamação na perna, morrendo após ser operado a esta.

“La Charmeuse de Serpents” (1907)

Ao contrário de tantos artistas que só seriam valorizados após a morte, Rousseau seria bem celebrizado durante a sua vida. Pós-impressionista, deu o mote para que se criasse o epíteto de “arte naif”, que se referia aos pintores que não tinham tido uma educação artística formal. Aliás, Rousseau, apesar de ter recebido algum acompanhamento por parte de pintores consagrados, como do orientalista Félix Auguste Clément, formou-se sozinho e inspirou-se nas ilustrações que via em livros infantis, para além, claro de está, das suas caminhadas nos jardins parisienses e do seu interesse por taxidermia (pela montagem e reprodução de animais na sua plenitude física). De igual modo, conviveu com alguns soldados que tinham estado na força expedicionária que havia invadido o México, que lhe permitiu aflorar a sua imaginação com as histórias que lhe eram contadas. Pintava, assim, pequenos fragmentos de uma paisagem (tanto natural como urbana, como chegou a pintar com frequência, para além de retratos) com maiores proporções, procurando destacar aquilo que, numa grande escala, lhe sobressaía. Foi um estilo que nem sempre gerou unanimidade, já que o primitivismo da sua pintura gerava choque e até sátira, embora Rousseau quisesse agradar a todos. Agradou, seguramente, aos cubistas e aos surrealistas, que o adoravam na forma destemida e pura como pintava, assim como a alguns outros artistas, como à poesia de Sylvia Plath e à música de Joni Mitchell, servindo, até, de inspiração para o filme de animação “Madagascar” (2005).

Henri Rousseau marcou uma nova forma de pintar e de exprimir a aura artística. O francês, quebrando barreiras e limitações impostas ao artista sem formação clássica e formal, deu asas à sua imaginação e ao seu cruzamento de fontes e de referências para depositar esse mesmo imaginário nas telas e nos palcos de exposição. Rousseau pintava como olhava, com recurso à cor e à vastidão quantitativa e qualitativa da Natureza, com preciosos mundos da vida selvagem, sempre com a referência humana. Eram lugares que, embora imaginados, reportavam sempre à dimensão exótica que desconhecia, na prática, na geografia do planeta, mas que acreditava e que sentia que fossem assim, puros e repletos de vida, no seu dia-a-dia. Desligados dos constrangimentos da vida urbana, Rousseau refugiava-se na Natureza e na sua ingenuidade, nos seus temas e motivos floridos e sempre munidos de um tão artístico encantamento.

https://www.youtube.com/watch?v=i9faiepeMh4

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