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A obra e o pensamento de Miguel de Unamuno e José Ortega y Gasset

por Lucas Brandão
20 Maio, 2020
em Livros
A obra e o pensamento de Miguel de Unamuno e José Ortega y Gasset

Miguel de Unamuno e José Ortega y Gasset

Miguel de Unamuno, nascido em Bilbao a 29 de setembro de 1864, e José Ortega y Gasset, nascido em Madrid a 9 de maio de 1883, foram dois dos intelectuais mais influentes de toda a vivência espanhola. Ambos filósofos, desdobraram as suas ideias na transição do século XIX para o XX. Por seu lado, Unamuno, ligado à Geração de 98 – uma geração de pensadores que repensava a identidade e os valores de Espanha na fase final do seu domínio colonial sul-americano -, tornou-se uma personalidade importante na sociedade espanhola pela sua presença política e académica (para além de reitor da Universidade de Salamanca, foi deputado das Cortes Constituintes que antecederam a sublevação militar de Francisco Franco, que inicialmente, apoiou, e a consequente Guerra Civil). Por seu lado, Ortega y Gasset esteve ligado ao movimento novecentista, que se seguiu à Geração de 98 e que antecipou a Geração de 27 – onde, entre outros, se destacou o poeta Federico García Lorca -, abraçando as vanguardas artísticas e culturais. Embora contrastantes em muitas questões, tornaram-se, ambos, igualmente relevantes na formação intelectual de Espanha.

O percurso de Unamuno

Miguel de Unamuno (1864-1936) escreveu obras de diferentes géneros, entre eles a prosa, a poesia, o ensaio filosófico, o teatro e a escrita de quase cinquenta mil cartas (muitas delas estão na casa-museu do autor, no centro histórico de Salamanca). Entre as dezenas de obras escritas, o grande destaque é para a obra “Amor e Pedagogia” (1902). Trata-se de um romance em que o protagonista, o intelectual Avito Carrascal, procura formar um génio numa criança a partir dos princípios modernos da pedagogia, então propostos por um filósofo alemão, de seu nome Karl Christian Friedrich Krause. Este seu idealismo, que seria sobejamente superado em reputação pelo de Hegel, entre outros, vocacionava-se para uma racionalidade harmonizada, tolerante e liberal, sustentada no cumprimento da lei, abrindo espaço para uma maior devoção, maior altruísmo e piedade pelo próximo. Procurava dar uma união entre o idealismo e o naturalismo, acabando por ser adaptado ao caso espanhol do século XIX, que procurava separar-se da Igreja e desenvolver o direito, a pedagogia e o universalismo como premissas máximas da nova sociedade espanhola. Seria célebre a sua defesa do franquismo, inicialmente, na sublevação de 1936, embora, num célebre discurso na sua Universidade de Salamanca, entrasse em choque com as suas pretensões, proferindo a frase “vencereis, mas não convencereis”.

Outra obra relevante é “Neblina”, de 1914, protagonizada por um jovem rico licenciado em Direito, de seu nome Augusto Pérez, e pelas suas turbulências passionais e existenciais, que o levam a questionar o seu dia-a-dia. O próprio Unamuno surge como uma personagem no livro, assumindo-se como o próprio autor e decisor dos próximos passos da vida de Pérez. Três anos depois, escreveu “Abel Sánchez”, uma reinterpretação do tema bíblico de Caim e Abel com duas personagens espanholas (Joaquín e Abel). Em 1921, escreve “La tía Tula”, narrando a vontade de Gertrudes, conhecida como Tia Tula, de ser mãe e os sacrifícios a que está disposta para o ser. Esta obra apresenta, no seu pano de fundo, um erotismo devidamente subtilizado, cruzando-se com as habituações tradições pastoris em relação ao matrimónio da mulher. De 1927, é “Como Escrever um Romance”, onde, para além de serem elencadas várias das memórias do autor, também traça algumas linhas orientadoras de como escrever.

Já na década de 1930, “San Manuel Bueno, Mártir” narra a devoção que Manuel tem numa pequena aldeia de Espanha, sendo o seu padre. As grandes questões que se colocam à predominância da fé cristã resulta da chegada do irmão da narradora, vindo das Américas, questionando a importância da religião. Apesar de não partilhar muito das caraterísticas literárias, esta é a última grande nivola que Unamuno escreve. A nivola seria um género literário inventado por Unamuno, e termo esse que seria usado, pela primeira vez, na obra “Névoa”. Trata-se, efetivamente, de uma novela, embora salte à vista o cunho idealista e a primazia do conteúdo dada pelo autor, o parco desenvolvimento psicológico das personagens, os contextos muito pouco precisos das circunstâncias da narrativa, contrastando com o realismo que se vinha impondo nessa fase. O espanhol dava, assim, uma profundidade filosófica e idealista às suas ficções, à imagem da sua poesia e das suas peças.

O que aqui faz falta é que eles vivam sãmente, que vivam em unanimidade de sentido, e com a verdade, com a minha verdade, não viveriam. Que vivam. E é isto que a Igreja faz, fazer com que vivam. Religião verdadeira? Todas as religiões são verdadeiras enquanto fazem viver espiritualmente os povos que as professam, enquanto os consolam de terem tido de nascer para morrer, e para cada povo a religião mais verdadeira é a sua, a que ele fez. E a minha? A minha é consolar-me em consolar os outros, embora o consolo que eu lhes dê não seja o meu.»

San Manuel Bueno, Mártir (1930)

Era uma fase em que muito era exigido à literatura, ainda muito aprofundada em muitos preceitos. Era exigido uma temática firme e particular, um contexto de espaço e de tempo bem específico, para além de convencionalismos a serem acatados pela sociedade. Por estas exigências se contraporem com aquilo que Unamuno desejava impor na sua escrita, criou a nivola, fugindo à rigidez das regras estéticas e narrativas que lhe seriam impostas na literatura tradicional.

Eram noções que incorporavam a sua forma de pensar no geral, inclusive a sua própria filosofia. Bebia do racionalismo e do positivismo, embora se mostrasse afeiçoado pelo socialismo, equacionando-o como forma de concertar a orientação de Espanha do século XIX, depois dos desaires que sofreu na América Latina, sendo grande parte desta outrora território do império ultramarino espanhol. Com ele perdido, e tratando-se de um rude golpe à identidade espanhola, surgia espaço para que se devesse repensar na sua estabilidade e, para isso, na sua reinvenção. Não obstante, Unamuno era alguém que procurava defender as virtudes teológicas – leia-se a fé, a esperança e a caridade. Encarnava, em muito, as ideias do dinamarquês Soren Kierkegaard, o grande proponente de um existencialismo cristão.

Depois da morte, não haveria nada para Unamuno. Porém, defendia que a crença na sobrevivência da identidade humana à morte seria necessária para se poder viver. A necessidade de crer em Deus e de ter fé é predominante, embora não se possa coadunar com a razão, dando origem a um conflito interior entre a fé e a razão que a nega. Absorvia cada vez mais do pensamento de Kierkegaard enquanto o existencialismo se ia frutificando um pouco por toda a Europa. Alguém que o influenciaria seria, de igual modo, o dramaturgo sueco Henrik Ibsen, um dos grandes influenciadores do cinema de Ingmar Bergman.

Entre os seus ensaios, Unamuno iria escrever sobre Portugal em 1911, em “Por Terras de Portugal e Espanha”. Unamuno, aliás, era um grande conhecedor da realidade política, social e cultural do país.  No entanto, entre os seus ensaios, destaca-se “Do Sentimento Trágico da Vida” (1913), onde faz uma incursão profunda pela forma como o papel do ser humano foi questionado, de um ponto de vista existencialista. Deste Aristóteles até ao seu querido Kierkegaard, passando pelo seu compatriota Santo Inácio de Loyola, acaba por rematar, como tese, a necessidade de crer em Deus. O espanhol faz uma reflexão ao cristianismo em 1925, na obra “A Agonia do Cristianismo”, meditando sobre o percurso até à sua crença pessoal.

O homem, dizem, é um animal racional. Não sei por que não se disse que é um animal afectivo ou sentimental. E que, talvez, o que o diferencia dos outros animais, seja mais o sentimento do que a razão. Vi mais vezes um gato raciocinar, do que rir ou chorar. Pode ser que chore ou ria por dentro mas, por dentro, talvez também o caranguejo resolva equações de segundo grau.

Do Sentimento Trágico da Vida (1913)

Quanto à poesia, Unamuno encontrou-se na sua exploração espiritual, explorando as suas inquietudes a este nível. Expunha a sua angústia, a dor causada pelo silêncio de Deus, para além do cenário da morte e da passada do tempo. O seu próprio país era objeto de reflexão poética, manifestando o seu desencanto e a sua preocupação com o futuro, para além da convivência entre sentimento e pensamento e da nobreza de espírito que pretendia encarnar. Na poesia, procurava ser breve, sucinto e tradicional, motivado pelo soneto, embora, inicialmente, despreocupado com a rima e com as métricas líricas. Exemplos de obras poéticas da sua autoria são “O Cristo de Velásquez” (1920, onde se debruça sobre a figura de Jesus Cristo e as questões suscitadas por esta) e “Andanças e Visões Espanholas” (1922, refletindo sobre a paisagem natural, sobre as suas emoções e sobre o real).

No teatro, Unamuno coloca muito do seu pensamento filosófico ao serviço dos seus enredos. Este seu teatro é, na sua essência, muito esquemático e económico, apresentando somente aquilo que aflige verdadeiramente as personagens. É uma austeridade que é influenciada pelo teatro da Grécia Antiga, que também é ilustrada pela própria cenografia, muito simplificada, que deve corresponder àquilo que é o fluxo-base da sua veia dramática: o interior das personagens. Esta revolução teatral protagonizada por Unamuno conhece a sua montra em algumas peças marcantes, como “A Esfinge” (1898, em que o protagonista entra no mundo da política e é confrontado com uma série de conflitos existenciais e espirituais), “A Venda” (1899, num trama em que a cegueira física não cega os olhos do coração), “Fedra” (1910, inspirada no mito grego da princesa Fedra e no seu trama de amor) e “O Outro” (1926, em que, novamente, o mito de Caim e Abel é reportado com a presença de um gémeo desconhecido do protagonista, com vidas em muito similares).

Outras peças igualmente marcantes neste percurso são “A Princesa Dona Lambra” (1909, em que o mito da morte de uma princesa depois de uma paixão intensa povoa o rumo das circunstâncias), “A Defunta” (do mesmo ano, em que um viúvo vê o rosto e a presença da sua amada na sua assistente), “O Passado que Volta” (1910, em que as vivências e as emoções de quatro gerações de uma família se repetem sucessivamente), “Soledad” (1921, também ele no mundo da política, embora o protagonista procure voltar ao meio da sua família), “Raquel Acorrentada” (do mesmo ano, onde uma violinista se procura livrar de uma situação familiar que não lhe agrada), “Sombras de Sonho” (1926, onde um amor incondicional defrauda uma jovem que vive somente com o seu pai) e “El Hermano Juan o El Mundo es Teatro” (1929, onde o galã Don Juan se arrepende das suas conquistas e procura redimir-se, dedicando-se à vida conventual e a ajudar as suas antigas paixões).

A filosofia de Ortega y Gasset

José Ortega y Gasset (1883-1955) era um filósofo puro, regendo o seu percurso de vida e de trabalho pela sua reflexão interior. Contudo, foi, também, deputado nas Cortes Republicanas na década de 1930. A sua dedicação foi, assim, na busca pelo ser fundamental do mundo, o todo, que não pode ser alcançado pela consciência, profundamente fragmentada, incapaz de esclarecer o sentido da existência. O seu pensamento situou-se numa corrente chamada vitalismo, que, embora aplicada à biologia, para além de considerada obsoleta, defendia que todos os organismos vivos eram movidos por um impulso vital, não estando sujeitos às leis da física e da química. Ortega y Gasset, considerando a vida como o centro de qualquer investigação de teor filosófico, e após divagar entre o objetivismo (a primazia das coisas e das ideias sobre os humanos) e o perspetivismo (refletida em “Meditações do Quixote”, de 1914, e em “Espanha Invertebrada”, de 1921, onde estuda a desarticulação e a desintegração de Espanha nos seus diferentes regionalismos), chega a uma nova posição.

Esta posição é criada por si, e tem como nome o raciovitalismo. Trata-se de uma superação em simultâneo do racionalismo e do vitalismo, estando a vida no centro e a razão como providencial para se entendê-la. Ultrapassa, assim, a filosofia aristotélica, que defendia a existência sob a consciência, em que a verdade surge como correspondência da existência e da razão com a forma de perceber a Natureza e as coisas têm um valor subjetivo, plantado numa hierarquia moral. Ultrapassa também o perspetivismo, que procura conhecer o conteúdo da consciência e assumindo como a verdade reduzida a perceções. A existência fica atrás do pensamento, que possibilita criar formas determinadas de ver e de pensar, dependentes do momento em que se vive. Cada um tem a sua perspetiva da realidade, não havendo nenhuma possibilidade de se determinar a verdade absoluta.

Chegado ao raciovitalismo, opunha-se à ideia do superhomem de Friedrich Nietzsche, assumindo que o eu é o eu e a sua circunstância. A unificação da razão e da vida surgia como o caminho para um sistema coerente, resultado de uma síntese homogénea. Cada vida surge como uma transição pura e particular, distante da verdade como foco da verificação científica e pragmática, tendo valor por si mesma, apesar de temporal e objetiva. Ortega y Gasset usa o pensamento de René Descartes, do seu entendimento do pensamento como prova da existência, para fundamentar o pensamento na vida. A vida funciona, para Ortega, como um impulso vital, e o papel do pensamento deve ser ir para lá de um conhecimento geral, procurando a razão da vida – por outras palavras, a razão vital. A radicalidade da vida define-a como algo em que nada pode existir fora dela, sendo que tudo radica nela mesma, desde os pensamentos às intenções.

Toda a ideia é pensada e todo o quadro é pintado a partir de certas suposições ou convenções tão básicas, tão evidentes para quem pensou a ideia ou pintou o quadro, que nem sequer repara nelas e por isso não as introduz na sua ideia nem no seu quadro, não as achamos ali postas mas precisamente supostas e como deixadas voluntariamente no esquecimento. Por isso, às vezes, não entendemos uma ideia ou um quadro: falta-nos a palavra do enigma, a clave da secreta convenção. E como, repito, cada época – vou ser mais exacto -, cada geração parte de supostos mais ou menos diferentes, quer dizer-se que o sistema das verdades e o dos valores estéticos, morais, políticos, religiosos têm inexoravelmente uma dimensão histórica, são relativos a uma certa cronologia vital humana, valem só para certos homens. A verdade é histórica.

O Que É a Filosofia? (1929)

No entanto, sem as circunstâncias, não se pode entender a vida, dado que estas abarcam todo o que faz parte da vida. Por serem individuais, a perspetiva do que é a vida também o é, sendo dependente das circunstâncias. Só o pensamento é que permite que haja consciência dessas circunstâncias. Porém, o ser humano é o ser vivo que mais tempo demora a ter instinto, embora seja o único com capacidade ilimitada para a aprendizagem e, como tal, uma realidade inacabada. Consegue definir um projeto para a sua existência e reunir os meios para o concretizar. O nascimento também traz subjacente o sentido de uma existência livre, de construção individual do seu caminho, antevendo as consequências das suas eventuais decisões e/ou dos acontecimentos.

A vocação surge, assim, com um projeto vital que cada um deve perseguir, tendo em conta as circunstâncias que experiencia. O projeto vital personifica a razão de ser de cada ser humano, sendo responsabilidade de cada um descobrir por si mesmo. A sensação de felicidade acaba por dar resposta à pergunta se essa razão foi encontrada e cumprida. A felicidade surge como o fim, a obtenção dessa verdade individual que capacita o ser humano de equilíbrio e de paz. Neste caminho, há oportunidades que vão sendo potencializadas e outras que são descartadas. A autenticidade de alguém é apercebida no facto de se a sua vontade é, de facto, colocada em prática com a finalidade de cumprir o seu projeto vital, e consiste em aproveitar as possibilidades em realidades.

Sobre as ideias e as crenças, Ortega faz a sua distinção, sendo que as ideias pertencem ao conhecimento demonstrável, ao saber científico, e as crenças não são discutíveis e acompanham a vivência do ser humano. Viver nas crenças é algo cómodo, embora nas ideias, inseguras e dúbias, seja algo sempre turbulento, porque permanece numa luta em busca de uma conquista, que transforma a ideia em crença. Não obstante, estas nem sempre são definitivas, dado que o pensamento as pode questionar.

Em termos sociológicos, o espanhol procurou caraterizar alguns arquétipos da sociedade da I Guerra Mundial. Classificou o homem-massa como alguém que se reflete em si mesmo, não tendo a necessidade de enfrentar os problemas ou de tomar decisões, sendo alguém pleno de direitos, embora indiferente aos deveres, podendo fazer o que quisesse. Era alguém que acreditava que as nações nasceram criadas e não fruto de anos de confrontos e de transformações. De igual modo, apresentou o sábio-bárbaro como alguém representativo do saber especializado, em que a sua área de domínio consegue apresentar as respostas todas sobre as dúvidas da existência. A sua postura dogmática fortalece o barbarismo da sua personagem. Estes dois tipos constituem a maioria. Depois, existe a minoria, que antepõe os deveres aos direitos, para além de procurar soluções para os seus problemas e de ter um maior nível de exigência. Ortega classifica-a de excelência.

Porém, a maioria engole as minorias, procurando estabelecer a sua própria sociedade, as suas próprias leis e normas. Desta forma, a democracia não é equitativa e aplicável em todas as dimensões. Estes conceitos são apresentados numa obra que escreve em 1929, de seu título “A Rebelião das Massas”. É uma obra escrita na fase de surgimento dos movimentos totalitários, incluindo da ditadura de Miguel Primo de Rivera, em plena Espanha, na década de 1920. Ortega defendia uma revolta, uma transformação assente nas minorias, nas mesmas que empurraram o rumo da História e que proporcionaram o progresso. Defendia, assim, um modelo liberal, embora com laivos anarquistas, apesar de não defender um assomo das massas no poder democrático. O liberalismo move-o a procurar a emancipação individual, e o anarquismo, com base socialista, procura um igualitarismo máximo. Receia, assim, o fenómeno da hiperdemocracia, em que a emancipação é feita sem o assumir de responsabilidades.

A nossa vida, como repertório de possibilidades, é magnífica, exuberante, superior a todas as históricamente conhecidas. Mas assim como o seu formato é maior, transbordou todos os caminhos, princípios, normas e ideais legados pela tradição. É mais vida que todas as vidas, e por isso mesmo mais problemática. Não pode orientar-se no pretérito. Tem de inventar o seu próprio destino.

A Rebelião das Massas (1929)

O receio de Ortega é ver os melhores, os mais capazes de liderar o rumo da democracia e da sociedade, a serem engolidos pelas massas, que, definindo uma bitola qualitativa, acaba por suster e conformar os seus membros. O homem-massa acaba por não reunir a vontade para procurar o efetivo progresso social. Desfruta deste, embora sem ter consciência da importância da sua participação e do seu esforço para o alcançar. Ortega defende até que existe ingratidão das massas em relação àqueles que são capazes de apelar e de porfiar pelo progresso. Para a administração política, o espanhol era partidário de mediação e de razoabilidade, ao contrário da ação direta que as massas procuravam. Responsabiliza-as, assim, pelo fim dos debates, que são necessários, dado que o liberalismo seria o chamamento mais nobre, que obriga à coexistência com o adversário, que respeita e a quem dá cidadania política. As massas, perante um cenário de diferença de ideias, não dá essa cidadania política a quem seja diferente. Assim, o Estado é visto quase como um fim, ao invés de ser um meio para o progresso.  Ortega alerta, também, para a incapacidade do Estado não conseguir resolver todos os problemas da sociedade, especialmente quando a absorve e não abre espaço para que os indivíduos possam mostrar as suas competências. Defende, assim, um Estado que seja capaz de aceitar a individualidade e a singularidade. Foi isso que procurou transmitir na sua passagem por Lisboa, onde lecionou um curso sobre “La Razón Histórica”, no ano de 1944.

Literariamente, algumas das obras que ficam como referências do seu trabalho, para além das já mencionadas, são “A Desumanização da Arte”, de 1925. Ortega y Gasset faz uma análise dos movimentos vanguardistas artísticos do século XX, afirmando o seu caráter de rutura em relação aos cânones artísticos e a consequente desumanização – ou seja, a desafeição por parte do público, limitando-se os artistas ao seu entusiasmo artístico – por parte destas novas formas de fazer arte. Nesse mesmo ano, publicou “Ideias sobre a Novela”, em que defende que aquilo que carateriza uma boa obra é o seu hermetismo, isto é, os enredos de um imaginário muito próprio e a atmosfera criada pelo autor, para além de personagens que se revelam através dos seus comportamentos e enredos que concernam a situações quotidianas; embora critique a morosidade descritiva de muitos romances. Em 1927, lançou a compilação de artigos “Teoria de Andaluzia”, onde discerne sobre a região andaluz e a sua história, a sua espiritualidade e as circunstâncias que a levaram a ser tão particular. O pensador foi, também, responsável pela fundação da “Revista de Occidente”, sediada na sua cidade, Madrid, a revista de divulgação científica espanhola mais antiga, onde contou com a colaboração de diferentes figuras bem conhecidas, como Albert Einstein, Franz Kafka ou Bertrand Russell.

Miguel de Unamuno e José Ortega y Gasset são dois dos nomes mais relevantes do pensamento literário e filosófico espanhol. Não se tratam somente de referência a nível nacional, mas também a nível continental, apresentando uma larga coleção bibliográfica, repleta de diferentes temas, embora com visões distintas entre si. Unamuno, mais ligado ao Cristianismo e ao existencialismo, Gasset, mais inovador e mais movido pelo vitalismo. De igual modo, propuseram-se a trazer uma lufada de ar fresco aos convencionalismos que se tinham aprofundado no país, dominado pelos tiques cavalheirescos e queixotescos. Espanha pode, assim, reivindicar, para lá dos muitos e muitos que estão por ser redescobertos nacional e internacionalmente, dois pensadores consagrados que tão bem personificam a transformação social e cultural de um país que, num só, tem tantos outros.

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Tags: EspanhafilosofiaJosé Ortega y GassetliteraturaMiguel de Unamuno

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