A morte da memória do património

por Comunidade Cultura e Arte,    23 Setembro, 2019
A morte da memória do património
Ilustração de Francisco Fonseca / CCA
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Se nos agarrarmos à ideia de uma cidade como museu (no sentido mais longínquo e redutor da palavra que agora se pretende mudar…) em que nada pode ser tocado, mudado ou sequer por todos usufruído – nunca poderemos pensar uma cidade como algo vivo, um organismo, uma célula. Por outro lado, é certo que não podemos ceder à transformação desenfreada do urbanismo, por gostos passageiros ou modas, como a do turismo que, como se sabe é um fenómeno à mercê dos voos low-cost.

Na infinidade de ideias sobre Património e sobre o que pode ser património, ainda não está suficientemente arreigada a ideia de humanidade. Porque, segundo a Unesco, o património pode ser da Humanidade, mas parece pouco humano, porquanto é tão frequentemente desfasado da necessidade que os indivíduos têm de património e o que património é, efectivamente, para eles.

Se quisermos utilizar como exemplo a cidade do Porto no momento actual, cujo centro histórico foi classificado pela UNESCO em 1996, o ritmo de construção, reconstrução e destruição é extraordinário. A linha do horizonte da cidade e hoje marcada por gigantescas gruas e guindastes que sustentam todo este frenesim de obras. Multiplicam-se as críticas, uns contra a gentrificação, outros contra a destruição do que consideram ser património. Estas vozes são ouvidas através das redes sociais. Talvez não fossem tão sonoras há 20, 30 ou 40 anos atrás, quando jornais e algumas revistas eram o único meio, depois de 1974, para fazer valer a palavra de um punhado de carolas acerca do património que estava à porta de sua casa. Mas os carolas são os mesmos, ou seja, não deixam de ser carolas. Uma amálgama de bairristas, académicos e historiadores, invade fóruns, espaços de divulgação digital e ainda algumas páginas de jornais para se insurgir contra a demolição de uma «casa histórica», de «painéis de azulejos», de um sítio icónico, como recentemente foram consideradas as escadas do Monte dos Judeus, às portas de Miragaia.

Sejamos muito claros, a cidade do Porto é construída e destruída há séculos. Para termos a cidade actual houve que «demolir» «cidades anteriores» e este equilíbrio de destruição-construção fez-se, sobretudo, para guindar uma ideia de progresso social, económico, demográfico, etc. Ninguém se imagina viver numa das ilhas do Porto, sem água, luz ou saneamento, só porque aquilo é património. E efectivamente era e é, se quisermos atribuir-lhe essa qualidade à luz da autenticidade que as cartas e convenções mundiais tantas vezes exigem para atribuir tal classificação.

Se nos agarrarmos à ideia de uma cidade como museu (no sentido mais longínquo e redutor da palavra que agora se pretende mudar…) em que nada pode ser tocado, mudado ou sequer por todos usufruído – nunca poderemos pensar uma cidade como algo vivo, um organismo, uma célula. Por outro lado, é certo que não podemos ceder à transformação desenfreada do urbanismo, por gostos passageiros ou modas, como a do turismo que, como se sabe é um fenómeno à mercê dos voos low-cost. Há que distinguir claramente entre ética e estética. Uma cidade maquilhada sem pessoas não é uma cidade, da mesma forma que sem pessoas que vivam nela não há cidade. Neste por vezes difícil equilíbrio se deveria fazer a gestão das metrópoles o que não serve necessariamente para todos os espaços urbanos.

O Porto tem uma dimensão que lhe permite conviver perfeitamente com um turismo regular e crescente e a com sua população autóctone, caso existissem medidas efectivamente reguladoras da transformação da habitação permanente (arrendada ou não) em alojamentos. Aliás, uma das vantagens de ter sido classificado o seu centro histórico como Património da Humanidade não seria o da preservação da tal «autenticidade» que todos os dias se perde em detrimento de projectos arquitectónicos que deixam mais a marca empresarial do que a marca autêntica de uma cidade de serviços para as pessoas que nela habitam? A quem cabe esta regulação? Tem sido feita? No entanto a destruição de «património» no Porto não é de agora, nem o turismo tem exclusivo na origem de tal destruição. De vez em quando se levantavam algumas vozes para obstar à demolição de uma casa com lavores, um velho fontanário, um arranjo mal feito num jardim. Mas e a remise da Boavista ou, ao mesmo ao lado, a antiga estação ferroviária da linha da Póvoa? Quem se lembra destes edifícios? Um foi destruído para a construção da Casa da Música, outro agoniza sem destino. Não eram/são Património? E os desenhos executados por artífices nas calçadas da praça da Liberdade e na Avenida dos Aliados, substituídos por um granito de produção industrial a bel-prazer de conceituados arquitectos, não era património?

Ainda há dias, na rua onde moro foi demolida uma antiga central de distribuição eléctrica, notável exemplo de arquitectura industrial modernista. Sem dó nem piedade desapareceu de um dia para o outro sem que mais alguém se lembre dela, se não que estava cheia envolvida em mato e bicharada. Os meus vizinhos elogiam agora o bonito condomínio que nasceu no seu lugar. O académico escreve um artigo sobre um edifício, vê-o ser destruído e clama por justiça. Dizem-lhe muito aquelas pedras, a fachada, os interiores – apaixona-se não pelo significado do lugar para quem nele morou ou por ele agora passa, mas pelo valor histórico dos materiais, a vida dos artistas e artífices que o projectaram. Para o cidadão comum, são ruínas e o significado social mais frequente para as ruínas é a morte, a desolação o fim.

Como patrimonólogo tenho o dever de pugnar pela defesa dos vários Patrimónios a que me vinculam leis, cartas e convenções. Mas não posso deixar de frisar dois aspectos essenciais na forma como, julgo, devermos encarar o que se considera ser património nos dias de hoje: um conjunto de bens materiais ou imateriais que servem, essencialmente, o entretimento e menos a educação ou a aquisição de conhecimento. Um deles é o carácter temporário das coisas. A cultura material produzida pelo Homem serve a sua existência e das gerações subsequentes, até estas deixarem de lhe atribuir ou função ou significado. O que se deve fazer depois? Acumular coisas?

Outro é o humanismo intrinsecamente ligado à função dessas coisas. Se separarmos o homem da casa onde vive, talvez não compreendamos tão bem o lugar e as suas funções, os usos e as práticas que o lugar propiciou àquele indivíduo e aos que o rodearam. Porque dissociamos, pois, nós académicos, tantas vezes a memória dos indivíduos dos lugares que frequentaram ou dos objectos que utilizaram? Não podemos pensar o Património em lugares inertes, sem vida. É algo do Homem para o Homem e se os homens não mais o querem, porque havemos de preservá-lo? Para memória, futura, naturalmente. Para Memória.

E aqui concluo o meu raciocínio. Da mesma forma que nos separamos de casas, objectos e até de pessoas ao longo das nossas vidas e de que guardamos apenas recordações ou memórias, também o Património exige que nos libertemos dele, quando ele nos deixa de significar algo. A preservação do Património não pode passar sempre pela conservação e restauro ou até pela consolidação de ruínas – o que em muitos casos seria até uma estimulante forma de educação visual para o cidadão que nelas vê apenas morte e desolação. A preservação do Património passa pelo resgate da memória, pelo registo das coisas em vários suportes, desde a fotografia ao vídeo, passando pelo texto e pelo desenho.

Creio que se este registo fosse sistemático – e não o é em Portugal –, teríamos pelo menos salvaguardado a memória de patrimónios que efectivamente se vão perdendo e cuja culpa dessa perda não pode ser apenas imputada ao Turismo ou à especulação imobiliária.

Mais do que investir em legislação para obstar a crimes que afinal continuam a suceder-se sem qualquer ou poucas penalizações, devia ter-se investido num inventário de gestão patrimonial (muito diferente do conhecido SIPA) em que não só se pudessem registar patrimónios classificados e reconhecidos pelos académicos, mas outros patrimónios assim sentidos pelas populações e pelos carolas que, felizmente, ainda estimulam muita da discussão pública sobre estes assuntos.

O pior, pois, quanto a mim não é a morte do Património. É a morte da memória do Património.

Crónica do Dr. Nuno Resende
Nuno Resende é licenciado em História pela Universidade do Minho (2001), mestre em Estudos Locais (especialização em construção de Memórias Históricas), pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2005) e doutor em História da Arte Portuguesa pela mesma instituição (2012). É actualmente professor auxiliar no Departamento de Ciências e Técnicas do Património da Faculdade de Letras – UP. Entre os vários trabalhos que tem publicado contam-se artigos e obras nas áreas da fotografia e retrato histórico, arte religiosa e iconografia, micro-história, redes sociais, hagiotopografia, estudos hodográficos entre outros temas, num período mediado entre a Época Moderna e a Contemporaneidade.

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