A Inquisição que veio do frio

por Nuno Miguel Guedes,    11 Dezembro, 2019
A Inquisição que veio do frio
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Apesar de tudo, uma pessoa vem para esta vida com algumas esperanças. Uma delas, pelo menos no meu caso, era não ter de assistir ao que se está a passar na Noruega desde há algum tempo. Discute-se, coisa extraordinária e assustadora, o que é ou não permitido escrever num livro. Sim, a coisa chegou a esse ponto. No caso norueguês, pilar do socialismo-porque-temos-petróleo, agrava-se: nada de escrever na primeira pessoa do singular. A literatura não deve – não deve, reparai ! – dizer “eu” porque toda a cultura política e social se inclina para a diluição do indivíduo face ao colectivo. Ora isto, politicamente, já teve e tem exemplos. Quem quiser que os adopte. Mas não deixa de ser assustador que haja ainda quem pense que a arte deva ser sujeita a uma ortodoxia, seja ela qual for. Pior ainda quando essa ideia nasce numa democracia liberal. Estamos longe dos artistas de regime. E mesmo esses… Lembro a conhecida anedota, contada pelos russos, sobre a morte de Maiakosvki, poeta futurista maior e entusiasta da revolução bolchevique. Até que um dia deixou de o ser. A história diz que se suicidou; o povo, arguto e impiedoso, conta que as suas últimas palavras foram “Não disparem, camaradas”.

Na Noruega a chamada “literatura da realidade” ou no original virkelighetslitteratur (rótulo vago, como todos) está sob ataque há pelo menos quatro anos. Este fenómeno voltou a ganhar força muito à conta do sucesso dos livros autobiográficos de Karl Ove Knausgard, seis volumes sob o título A Minha Luta (todos publicados em português pela editora Relógio de Água).

É uma luta antiga e futura: gente que se revê nas personagens de romances e que fica indignada. Que o autor não tem direito, porque ninguém perguntou nada, porque a fotografia não fica bonita. Percebe-se, porque nenhum escritor escreve a partir do nada. Que haja um debate em que uma das partes diga que isso não é eticamente correcto (o que implica naturalmente outra coisa muito sintomática destes dias: toda a arte tem de reflectir uma ética) , isso,volto a dizer, é que é preocupante. Há gente, neste debate, que reclama um código ético para a literatura, uma espécie de livro de estilo de comportamento que não se pode transgredir. Uma vez que o faça, o autor é maldito. E pior: deixa de ser literatura. Sim, eu sei: nobody expects the norwegian Inquisition.

Nem vou falar do desconhecimento da história da literatura: haverá gente melhor para isso e eu não passo de um leitor inquieto. Mas escuso de invocar todos os escritores que se basearam em pessoas reais para criarem ficção. Que haja quem se reveja e se aborreça é coisa normal e já tratada (é rever o As Faces de Harry, de Woody Allen). Azarinho. Há e haverá sempre um autor, vivo, pulsante, individuo que olha, regista e cria. E o que cria é parte dele, e o que faz é parte legítima da sua auctoritas – autor, autoridade. Negar oficialmente e de forma proibitiva essa possibilidade é negar toda a criação. Por mim, se a coisa continua assim, estou pronto para a resistência e pegar em armas. Ou então talvez não: estou tão cansado destes dias em que a arte e a vida têm de ser um panfleto que há dias em que me apetece contradizer Maiakovski e implorar: disparem, camaradas!

Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.

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