A independência artística de Aurélia de Sousa

por Lucas Brandão,    9 Setembro, 2021
A independência artística de Aurélia de Sousa
“Autorretrato” (1900) / detalhe
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Aurélia de Sousa destacou-se como uma das artistas redescobertas com origens na cidade do Porto. Nascida no Chile, em Valparaíso, a 13 de junho de 1866, afirmar-se-ia em Portugal, país de onde era oriunda a sua família, nomeadamente na cidade do Porto. Aqui, frequentou a Academia de Belas Artes ao lado da sua irmã, Sofia de Souza, que também se tornaria pintora. Do seu contributo à cidade e ao país, Aurélia teria uma escola secundária com o seu nome, que persevera hoje como uma das principais do Porto. Seria um caminho trilhado, assim, até ao dia 26 de maio de 1922, quando faleceu, aos 55 anos.

Maria Aurélia Martins de Souza cresceu numa família de emigrantes no Chile, em busca de melhores condições de vida. O regresso, assim, só se proporcionaria quando o pai já havia acumulado uma fortuna considerável nas obras dos caminhos-de-ferro nesse país, motivando esse retorno da família. Passaram a viver no Porto, mesmo colados ao rio, numa propriedade privilegiada, a Quinta da China, na zona de Campanhã. Cresce num ambiente com caraterísticas bucólicas, que convidavam ao silêncio e à introspeção, mas também a uma familiarização com a vida feminina da época, nomeadamente em torno das atividades domésticas. Vivia rodeada de mulheres desde o falecimento do seu pai, em 1875, sendo que a mãe ficou com a tutela das suas seis filhas naquela quinta. No entanto, as aulas particulares de desenho e de pintura que beneficiou até aos 23 anos fizeram-na não conformar-se com esse papel, criando um quarto para si, onde instalou o seu ateliê pessoal.

A sua perseverança levá-la-ia a ingressar, com a sua irmã mais nova, Sofia, na Academia de Belas Artes do Porto. Acompanhada, claro está, já que era impensável uma mulher sozinha a frequentar a universidade. Fá-lo com uma idade já algo avançada para o que era normal, com 27 anos, embora faça dois anos num, por já ter total domínio das bases do desenho e da pintura. Aqui, conheceria João Marques de Oliveira, um pintor seu professor que muito a influenciaria. Deixando o último ano do curso em Pintura Histórica por acabar, partiu para Paris, com o apoio financeiro das irmãs mais velhas e dos seus cunhados, portuenses burgueses que ajudariam a família a ter mais desafogo financeiro, para tomar conhecimento da pujança artística, nessa centralidade expressiva da Europa, tomando riscos inusitados para uma mulher numa sociedade ainda tão retrógrada.

Quando lá chega, é com a vontade de continuar a fazer prevalecer a sua vontade, a de ser uma artista profissional. Lá, inscreve-se na Academia Julian, curiosamente também com a sua irmã, Sofia, que lhe faria companhia dois anos depois, e cruza esta frequência com um crescente périplo um pouco por todo o resto do continente, também com ela, entre Roma, Florença, Berlim, Antuérpia e Bruxelas (encantando-se com a pintura flamenga), para além do norte de França, zona que ambas preferenciavam. É aqui que vai começando a pintar com sentido sério e rigoroso, com sintonização ao impressionismo, chegando a vender alguns dos seus retratos, estilo que começava a celebrizar, em especial com “Autorretrato” (1900, pintado ainda no Porto).

Para se ajudar a sustentar, também foi dando algumas aulas particulares de desenho e de pintura, à imagem do que havia recebido na sua juventude. Por não se ter casado e, por conseguinte, não ter filhos, dedica-se de corpo e alma ao exercício das suas paixões, que também, para lá da pintura, passaram pela fotografia. Beneficiou, assim, de um estado privilegiado, já que, como mulher, se esquivou às convencionais obrigações sociais e familiares. No próprio meio artístico, isso só era consentido com unanimidade se se tratasse de um talento prodigioso, que as tornasse verdadeiramente artistas. Aliás, a sua pintura teria de ter rasgos masculinos, sob o risco de ser ostracizada perante o contexto social e artístico vigente, e de forma a poder diferenciada, oscilando entre o vigoroso do masculino e o sensível do feminino. Aquando do seu regresso, alegadamente por padecer de uma tuberculose, começa a assumir as funções de ilustradora em várias revistas e jornais de cariz literário. Isto após ir obtendo algum reconhecimento naquele concorrido ambiente artístico.

“Santo António” (1902)

A sua pintura notabiliza-se em Portugal já na década de 1910, num tempo de República, no qual começa a expor com assiduidade no Porto (já antes, não obstante, tinha exposto com regularidade, antes de partir para Paris). Cá, expõe, assim, na Sociedade de Belas-Artes do Porto (instituição que chegou a poder dirigir, mas que recusou) e no Ateneu Comercial do Porto, para além de integrar outras exposições coletivas. No entanto, recebe também honras de exposição no certame anual da Sociedade Nacional de Belas-Artes, em 1916. Era a única, ao lado da sua irmã, das 11 pintoras que lá expunham, com formação superior frequentada em Portugal e em França.

Postumamente, após uma época de esquecimento, que só foi atenuado com uma investigação afincada ao abrigo da História da Arte portuguesa, também teria duas retrospetivas de grande prestígio, tanto em 1936, no Palácio de Cristal, onde constaram mais de duas centenas das suas obras; como em 1973, no Museu Nacional Soares dos Reis, onde foram expostas mais de 150 pinturas. No Porto, porque o seu trabalho encontrava-se por lá disperso, em diversas tutelas privadas, não sendo tão requisitadas, até à data, pelos grandes mercados da arte e mesmo pelos organismos de referência de exposição da mesma. Tanto que, seguidamente, nas décadas de 1980, de 1990 e de 2000, as suas obras seriam expostas em Paris, em Londres e em Nova Iorque.

Aurélia de Sousa dá, assim, mobilidade às suas paixões, deambulando entre as já referidas pinturas e fotografias, para além do próprio desenho de azulejos. A estas segundas, fá-las com um sentido mais direto de compilar momentos familiares, mas, e em essência, como uma verdadeira expressão artística. Aproveitando o campo, o jardim e as cidades por onde passou, fez uso da sua câmara fotográfica, móvel e facilmente transportável, para captar momentos análogos aos da pintura, em que a tonalidade, a estética e a própria composição e disposição dos elementos fossem as premissas que mais importavam. Foram fotografias que também ajudaram a espicaçar e a estimular o instinto da pintora nas telas e no seu papel como criadora de raiz, a partir da ausência e do vazio, atuando, de igual modo, como rascunhos de possíveis retratos ou até de estudos de poses e de luz. Aliás, alguns desses retratos denunciam, desde logo, uma postura de confronto em relação à discriminação de género, adotando poses sérias e sisudas, para além de suscitar a provocação, tanto na denúncia do sofrimento feminino, como na afirmação de visuais inusitados e irreverentes, como que uma emancipação da própria mulher.

“No Atelier” (1916)

Aurélia de Sousa dedica os seus últimos anos a uma maior pacatez e privacidade, remetendo-se mais no seu meio privado, no ateliê na sua Quinta da China. Lá, continuou a pintar e a trabalhar com a fotografia, montando um laboratório de revelação complementar ao seu espaço de trabalho. Apesar disso, faz viagens pontuais a Paris e a Madrid, para além do Funchal, talvez para tratar da tuberculose que não havia sido debelada na totalidade. A sua obra refletiu essa inflexão, com mais destaque para a solidão, a saudade e a paz, em que o silêncio é nota dominante no retrato do quotidiano e da própria pintora (“No Atelier”, de 1916, é exemplificador).

Depois de um caminho que, desviando-se das vanguardas, a fez andar pelo naturalismo, por entre as suas paisagens e naturezas-mortas, mas também pelo realismo dos seus retratos, Aurélia colhe um leque de registos associados à figura feminina, em muito em torno das suas crenças (“Santo António”, de 1902) e dos seus hábitos, desde os passeios pela Natureza até aos próprios sons e espaços do lar, envoltos numa intimidade que capta, também, a dimensão popular portuguesa (“Cena Familiar”, de 1911, é um exemplo disso mesmo). De igual modo, os retratos que fez podem ser encarados com uma perspetiva romantista, já que acentua a carga emocional das mulheres e o seu sofrimento e angústia numa sociedade de opressão e de desfavorecimento destas. Grande parte da sua obra faz, hoje, parte do núcleo museológico do Soares dos Reis, mas também do Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado e, ainda no Porto, da Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio, sobrinha da própria Aurélia.

Aurélia de Sousa colheu mais do seu engenho artístico após a morte do que em vida. Aliás, seria homenageada em diversas cidades, com ruas com o seu nome, mas também com as várias exposições de retrospetiva e de descoberta do seu trabalho. Dos seus retratos, que pautam um percurso que a afirma como um rosto de confronto e de independência, jaz um vínculo com o estatuto de artista, que coloca de parte as obrigações impostas pela sociedade e que a fazem ser uma mulher livre, diferenciada e capaz de marcar a sua presença na comunidade artística portuguesa. Fá-lo no cruzamento de várias escolas e de várias influências, que a sua vida conheceu e que a sua obra discorreu, no seu sentido amplo e livre de uma artista em plena expressão e afirmação.

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