A identidade é uma crença

por Comunidade Cultura e Arte,    12 Agosto, 2019
A identidade é uma crença
Vanity, Auguste Toulmouche (1890)
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Nós somos a geração capaz de lutar pelo que não conhece, tal o potentado que é aquilo que acreditamos ser a identidade.

Admiro as terras e cidades que me dizem algo, cada uma por diferentes e similares motivos. É este o meu critério. No entanto, há locais, pessoas e tradições que me faltam de modo a preencher um outro maior e mais antigo conhecimento de cada uma delas. Um conhecimento como que “rural”, de pequenos e significativos espaços. Mas continuo a admirá-las. E defendê-las-ia como pudesse. Defendê-las-ia na sua identidade e defendê-las-ia nas minhas amizades, memórias e hábitos: minha identidade.

A identidade é uma crença.

As crenças são criações humanas, e essas mesmas não se auto invalidam. A Sé de Évora existe e é criação humana. Antes da sua edificação física, primeiro foi necessária a edificação de uma doutrina, um credo que ao pobre aconchegasse a alma, ao soldado desse esperança de um futuro sem ou com ele (nesta ordem) e ao próspero lhe aumentasse a autoconfiança.

Assim, a definição de identidade caberá aos pseudo pois a única possível será um espaço em branco.

Identidade é paradoxal. A sua exclusividade é o inverso e vice-versa. Nós é que sabemos e, por isso, não há resposta de dicionário, porque também este “nós” não é fixo, nem definível. Quem somos nós? Os jovens? Os intelectuais? Os portugueses? Os de esquerda ou direita ou de um terceiro lado? Os europeus? A humanidade? A natureza (“allez Alberto Caeiro allez”)?

É por isto mesmo que temos uma identidade tão forte. Porque para nós ela pode ser qualquer coisa e por isso não exigimos saber no que consiste. Sabemos que ela existe porque existimos. E é suficiente. É assim que uma identidade pode ser criada. É mais forte do que um ideal, apesar de não o ser. Novamente, é paradoxal.

No primeiro, um ativismo político, cultural, empreendedor mais facilmente ganha forma e avança. No segundo, porque parte do nada. Que coisa pode ser mais forte do que uma identidade que parte de nada? Zero? “Nicles”? Mesmo que essa força seja menor do que numa possível paragem seguinte.

Essa mesmo: o idealismo. Os princípios, valores, costumes, tradições e espaço para as deitar abaixo e criar outras novas de acordo com os ritmos dessa sociedade. Isto é, de forma natural (Alberto Caeiro!).

A literatura russa clássica (e até, de forma diferente e particular, o Estado russo desde a viragem do milénio) ensinam-nos algo do estilo “isto é uma m*rda. Dá me dor, pesadelos e pior, é estúpido.  E é por isso mesmo que a adoro. Maravilha!”.  É assim que eles são e estão (e não são e não estão. Lá está a idiossincrasia a que me refiro).

Amar um clube de futebol sem sucesso, nutrir admiração por alguém condenável, um gosto ou comportamento fora do “normal”, ou discussões com amigos e parentes. Nós gostamos das coisas apesar delas. Não gostamos delas por alguma aspiração a dor ou por sofrermos de uma hipotética síndrome de Estocolmo. Também não saltamos a dor, é verdade. Perpassamo-la, e nisso há algo único, pois quem faz isso se não verdadeiramente gostar desse algo?

Nós somos como uma grande cidade adormecida, que é grande pela aura que não existe, criada pela inexistência de abanões, mantida por inércia face às ordens vigentes, pelos jovens deprimidos. É uma nova depressão que dói, mas que é a nossa depressão. Diferente das anteriores antes da web. Contudo, somos mais valentes porque rimos e sorrimos. Tentamos e falhamos. Trabalhamos arduamente e somos preguiçosos. Superamos os nossos sonhos e ficamos aquém. Invejamos e apoiamos. Esta depressão é mesmo nossa porque nós temos a “lança do destino”, objeto simbólico da função que os Otonianos desempenhavam como guias do seu povo, uma grande linhagem de imperadores do Sacro Império-Romano Germânico, entidade sombra do que inevitavelmente já tinha decaído  (basta ver o nome), mas que se mantinha por uma identidade ainda que poeirenta, vindo mais tarde a ser a origem dos atuais contornos étnicos europeus.

Em suma, mandamos nela.

Finalizo: somos uma grande cidade adormecida, porque também somos grandes. Basta alguém atear e verá como lutamos pela nossa identidade.

Texto de Miguel Mateus
Nascido (com orgulho) no Porto, mas com toda a vida em Évora. Estudo Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa. Após um passo em falso em Gestão, é este o caminho que agora tomo, fundado numa profunda admiração pelo poder da palavra. Livros, filmes, música, desporto, história: às vezes falta tempo para tudo.

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