A identidade e a morte exploradas de forma profunda em Final Fantasy IX

por João Miguel Fernandes,    2 Janeiro, 2020
A identidade e a morte exploradas de forma profunda em Final Fantasy IX
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Quando foi lançado para a Playstation, no ano de 2000, Final Fantasy IX foi apelidado de jogo “nostálgico”, uma homenagem a toda a série. O cenário medieval (a fazer lembrar os primeiros títulos), assim como referências directas a outros jogos (o personagem Vivi é o Mage dos primeiros jogos; a espada de Cloud Strife, de Final Fantasy VII pode ser encontrada numa loja, etc) e o sistema de classes (como os primeiros jogos), deu-lhe essa fama de jogo retrospectivo de toda a série, mas, na verdade, Final Fantasy IX é um jogo com uma identidade única e um dos melhores de RPGs de sempre com mérito próprio.

O que torna o jogo tão especial são os seus personagens, provavelmente os mais complexos de todos os jogos Final Fantasy. Os principais temas explorados são a questão da identidade e da morte. Quem somos, para onde vamos, o que fazemos aqui? Todas estas questões são exploradas de forma brilhante através de cada um dos personagens. E o mais interessante é que, inicialmente, começam todos por ser grandes estereótipos sociais, mas, conforme a narrativa avança, os personagens vão evoluindo num sentido próprio e incrivelmente complexo. Temos a clássica princesa, o seu fiel guarda costas, o bandido casanova, a guerreira, o personagem inseguro e tantos outros que se vão transformando sempre em personagens mais fortes.

Para quem não sabe, um dos pontos fortes da saga Final Fantasy é a sua história, principalmente a forma como a história é contada e se desenrola. A série é forte também pelo seus personagens, banda sonora e aventura. É praticamente um livro jogável, onde, enquanto jogadores, não temos grandes poder de decisão, apenas acompanhamos o desenrolar da acção, mas somos envolvidos no drama de cada personagem. Tal como num livro, há personagens que vamos adorar e outros que vamos detestar, mas teremos sempre que acompanhá-los.

Embora todos os personagens aparentem pertencer a estereótipos sociais, esta realidade não é bem verdade, pois cada um deles é totalmente único e possui uma personalidade própria e complexa, algo que não encontramos frequentemente em videojogos, já que um dos grandes propósitos da maioria dos videojogos é fazer com que nos consigamos identificar com os personagens. Em Final Fantasy IX não há barreiras. Todos os personagens perderam algo na sua vida e todos eles procuram a sua identidade, um pouco como todos nós, mas isto não é algo que nos faça sentir confortáveis, maioritariamente procuramos fugir desta realidade. Final Fantasy IX atira-nos todos estes problemas à cara e prende-nos com o seu enredo.

Seria impossível falar de FFIX e não referir Vivi, um dos melhores personagens de sempre no mundo dos videojogos. Sendo um “Black Mage” com grandes poderes, é interessante que o personagem duvide, ao mesmo tempo, da sua força. Além de ser um personagem com grande falta de confiança, Vivi descobre que afinal é um ser artificial e que foi criado com a única missão de destruir outros. Esta revelação retira-lhe todo o propósito de viver e, apesar de sermos nós a comandarmos a nossa vida e de termos a capacidade de decidir o que fazer, Vivi deixa-se envolver nesta definição inicial e na razão pela qual foi criado para sustentar a sua razão de viver. Ao invés de acreditar em si próprio, Vivi mergulha numa profunda depressão, tendo perdido a sua identidade com esta descoberta. Ao longo do jogo, vamos assistindo a uma luta constante entre Vivi, si próprio, e o mundo. Vivi procura saber quem é, afinal, o que faz neste mundo e encontrar algo para lhe dar força para viver, basicamente o mesmo que todos nós ao longo da nossa vida. Outra tema explorado através do personagem é a morte. Vivi sabe que tem um curto prazo de validade, pois vários outros Black Mages deixaram de funcionar e pararam. Ao longo do jogo, o personagem vai criando uma força interna incrível, fruto da ajuda dos seus amigos, mas também de si próprio, pelo facto de encontrar a sua identidade e enfrentar a dura realidade que é saber que se vai morrer a qualquer instante.

O que é interessante em FFIX é que todos os personagens procuram a sua identidade. Garnet é a princesa do reino de Alexandria, completamente posta de parte pela sua mãe, a rainha Brahne. Apesar de ser bastante ingénua, Garnet é, também, bastante inteligente e, ao longo da história, a sua procura por uma nova identidade prende-se com o facto de parar de depender de outras pessoas e começar a ser independente. Além de ser confrontada com o facto da sua mãe a querer matar, Garnet, que perdoa a mãe (que é, na verdade, mãe adoptiva), mas, mais tarde, no jogo esta acaba por morrer nos seus braços. Em Garnet, assistimos a dois momentos próprios de todos os seres humanos: perda da inocência e criação de independência; confronto com a mãe e morte da mesma.

Todos os personagens transmitem algo que faz parte da vida da maioria de todos nós. Freya, a guerreira de Burmecia, procura pelo mundo o seu eterno amor, Sir Fratley. Além de perder grande parte da sua raça, graças à destruição provocada por Kuja (o vilão da história), Freya descobre também que o seu amor, que procurou toda a vida, não se lembra dela. Sir Fratley sofre de amnésia e não se lembra de nada. Freya é a clara ilustração da desilusão amorosa, do coração partido, de termos que enfrentar uma realidade que é dura e cruel. Sir Fratley nunca recupera verdadeiramente a memória, mas, no final do jogo, ele e Freya estão mais próximos, tendo Freya sido capaz de conquistar o seu amor por duas vezes.

E que dizer de Zidane? À primeira vista é apenas mais um casanova convencido, com toda a confiança do mundo, mas ao longo do jogo vemos o quão frágil o personagem é, provavelmente como todas aquelas pessoas que achamos que são assim tão fortes. Zidane descobre, assim como Vivi, que é fruto de uma criação artificial, que existem vários clones iguais a si, e que a sua identidade não se reflecte pela sua criação, mas sim por quem ele quer ser. Além de descobrir o seu amor por Garnet, passando por vários momentos depressivos, outros em que se sente completamente derrotado. Zidane é um personagem bastante complexo e que, ao contrário de Cloud e Squall dos dois jogos anteriores, é uma personagem social, que acredita nas pessoas e que acima de tudo acredita que pode mudar o mundo.

Além destes personagens, existem ainda outros, como Steiner e Eiko, que também têm uma curva evolutiva bastante interessante. E, além disso, existe um mundo inacreditavelmente belo. Todas as cidades, vilas e florestas de FFIX são únicas. Alexandria, Treno, Lindblum, Dali, todas as localizações são inspiradas no tema “Steampunk” e medieval, mas todas elas têm uma identidade própria bastante única, sendo provavelmente dos universos mais bonitos de todos os Final Fantasy.

Final Fantasy IX é um jogo com temáticas complexas e perturbantes, principalmente para adultos, que têm a capacidade de entender a sua própria mortalidade e o quão difiíil é a busca pela sua própria identidade. Além disso, FFIX enfrenta todas as questões sociais e coloca a procura pela identidade como o centro do que define ser humano ou não. No fundo não é importante se somos ou não considerados humanos, mas sim se nos sentimos como tal. Esta é uma história sobre o que significa estar vivo. Somos definidos por padrões sociais e pelo que nos dizem? Ou somos nós capazes de nos definir a nós próprios e vivermos felizes? FFIX responde a todas estas questões e muitas mais, confrontando os nossos medos e fazendo-nos acreditar que somos capazes de moldar as nossas decisões. E, neste mundo, personagens artificiais como Vivi e Zidane são, no fundo, bem mais humanos do que muitos de nós.

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