A história e os protagonistas dos Blues

por Lucas Brandão,    20 Novembro, 2020
A história e os protagonistas dos Blues
B.B. King em Hamburgo, em Novembro de 1971 / Fotografia de Heinrich Klaffs – Wikimedia Commons
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Com origens nas profundezas do sul dos Estados Unidos, os blues nasceram de uma miscelânea, de uma infusão entre o território americano, desde o jazz ao rock n’roll, e as raízes africanas, nomeadamente nas suas tradições musicais e espirituais. Musicalmente, o diálogo entre dois diferentes discursos (o call and response), as suas escalas próprias, e o progresso harmónico dos acordes, em especial com a sua blue note, pautada com um registo mais agudo ou mais grave que o estandardizado. O efeito repetitivo do ritmo produzido a partir dos swings comummente usados no jazz dão forma e conteúdo aos conhecidos grooves. De letras mais modestas e simples, passou-se a um registo gradualmente mais tripartido, repetindo as primeiras estruturas musicais e depois findando numa linha mais longa e acentuada. O surgimento deste género musical coincide com a emancipação das comunidades afroamericanas, nomeadamente após o fim da escravatura e o surgimento dos juke joints, estabelecimentos onde estas comunidades conviviam e onde davam os primeiros passos na produção musical. É um caminho que, ainda hoje, prossegue em marcha consistente e vibrante, de coração cheio e com vontade de se exprimir.

O termo “blues” significava um estado depressivo, um espírito inquieto e turbulento, que bebe também das tendências alcoólicas que submergem este estilo musical. Embora a documentação quanto às origens dos blues seja parca, dado o seu desenvolvimento acontecer em comunidades pobres e isoladas, sabe-se que o sul do Texas e, ironicamente, alguns dos estados mais flagelados pela escravatura — entre outros, o Alabama, o Mississippi, a Florida, a Carolina do Norte e a do Sul e a Georgia — foram o embrião das primeiras impressões deste género musical. Quanto a datas, fala-se que, pouco antes do século XX começar, já se ouvia música criada pelos membros das comunidades afroamericanas nos pequenos pubs que já foram mencionados, onde o lazer predominava. Era uma fase de transição, em que encontravam alguma autonomia na sua vida, deixando de depender de outrem na sua produção agrícola e na construção civil, nomeadamente nas linhas de caminhos-de-ferro.

A própria predominância da música religiosa já falava alto e tendia profundamente o decurso dos blues, em especial do canto gospel que tanto carateriza, ainda hoje, muitas das celebrações religiosas destas comunidades. Porém, e do rock imberbe, vinha uma trepidação de ritmos e de melodias diferente, com mais andamento e com mais profundeza, sempre assente num conteúdo emocional que não tinha sido escrito na Bíblia, mas que fluía no sangue de muitos e na ancestralidade de outros. Os cânticos dos seus antepassados, grande parte deles escravos, eram um motor de proclamação dessa emancipação concretizada, embora sempre contestada e possível de ser aprimorada. Para além dos discursos harmónicos europeus e das tradições africanas, que incluem também tradições do Norte de África, nomeadamente do Magrebe, no extremo norte, e do Sahel, logo abaixo, também as celebrações e as criações artísticas das comunidades nativas americanas contribuía para a sua maturação, em especial nos quatro beats que foram orientando a criação musical.

Os instrumentos de cordas começaram a ser usados frequentemente, em especial o arco de Diddley – um instrumento de uma só corda – e o banjo – que teve origens nas comunidades escravizadas da América Central e da África Ocidental. Foram os discursos instrumentais iniciais que fizeram surgir os primeiros grandes nomes associados ao género, como Lonnie Pitchford, Eddie “One String” Jones ou James “Super Chikan” Johnson no arco de Diddley, e Papa Charlie Jackson ou Gus Cannon no banjo, este que também era crucial no ragtime, um outro género que antecipou o jazz norte-americano e que traduzia os padrões melódicos da música africana. Os blues eram, ainda, em muito confundidos com a música country que surgiu na mesma altura na mesma zona, embora esta fosse, tendencialmente, composta por indivíduos de etnia branca. Foi assim que os blues encontraram o seu caminho, a sua identidade: as comunidades rurais empobrecidas que procuravam desvendar-se na sociedade com alguém relevante e importante no desenvolvimento urbano que se ia perspetivando no país.

Os cânticos espirituais das comunidades afroamericanas, que já foram mencionados, também ajudaram a destrinçar essa identidade, já que beberam bastante dos seus tratamentos de cordas. Não obstante, os blues chegaram a ser conotados como “a música do diabo”, em contraste com a música gospel. Porém, a aproximação das comunidades afroamericanas dos grandes pólos urbanos do país ajudaram a que os blues começassem a reconstruir a sua apresentação e a sua própria fama, adaptando muitas das nuances que a música de Tin Pan Alley (situado em Nova Iorque, promovia um grupo de compositores e de músicos que produziam baladas e outras canções de cariz cómico) ia apresentando. Foi assim que nasceram aquelas que se consideraram as primeiras composições formais dos blues, nomeadamente a partir de Baby Franklin Seals (“Bay Seals’ Blues”), Hart Wand (“Dallas Blues”) e W.C. Handy (“The Memphis Blues”), aquele que seria considerado como o pai do género. Essa fama foi conquistada não por os ter criado per se, mas por ser pioneiro na sua transposição de um ambiente mais regional, focado no delta do Rio Mississippi, para uma pujança verdadeiramente nacional.

No entanto, ele seria capaz de tornar os blues “eruditos”, já que os transcreveu e os orquestrou de uma forma quase sinfónica, com o recurso a bandas e a cantores. Eram composições que se encontravam com o ragtime e com o jazz e que culminaram na célebre “Saint Louis Blues”. Os palcos dos blues deixaram os bares e passaram a ganhar destaque em teatros e outros palcos e companhias, como o Theater Owners Bookers Association, um circuito de artistas de vaudeville, o bar nova-iorquino Cotton Club, em plenos e loucos anos 1920, e, ainda no estado do Mississippi, a famosa Beale Street, que acolheu muitas composições e o início dos Memphis blues, um género recetivo a uma diversidade pouco comum de instrumentos e de fundações folclóricas.

No coração daqueles que não diferenciavam o country dos blues, nasciam grandes impulsionadores deste género cada vez mais ramificado. Bo Carter, Blind Lemon Jefferson, Lonnie Johnson, Tampa Red (o “mágico da guitarra”) e Blind Blake faziam das cordas um caminho de amplificação da sustentação da música, antecipando a técnica da slide guitar (o uso de um tubo oco e cilíndrico nas cordas da guitarra usada, para produzir tons bem distintos). A improvisação era muita, embora as emoções fossem consolidadas e anunciadas desde há muito, vocalizando a densidade deste género musical. Foi assim que os tais “Delta Blues” se desenvolveram, misturando as origens rurais com as novidades urbanas. O seu grande mestre seria Robert Johnson, que somente viveu 27 anos, mas que deixou um legado incontornável e inestimável, sustentado num talento instrumental e vocal muito raro. Charley Patton e Son House, seus antecessores e os fundamentos deste ramo do género, abriram-lhe esse caminho; enquanto no sudoeste do país, onde o fingerpicking na guitarra se assimilava à música ragtime e onde Blind Willie McTell e Blind Boy Fuller eram mestres, acompanhados de letras verdadeiramente poéticas e delicadas, na herança de Curley Weaver, Barbecue Bob e Kokomo Arnold.

Ainda em Memphis (1920s-1930s), as jug bands, grupos de músicos que atuavam com instrumentos convencionais, mas também com outros artesanais e domésticos, davam uma outra roupagem aos blues. A banda de Guss Cannon foi acompanhada por outros nomes de relevo, como Frank Stokes, Sleepy John Estes, Robert Wilkins, Kansas Joe McCoy, Casey Bill Weldon e uma mulher, algo que, então, era surpreendente: a célebre Memphis Minnie, que brilhava com a guitarra e com a voz de um modo arrebatador. De Memphis, muitos partiram para zonas mais urbanas, nomeadamente para Chicago, em que, no início dos anos 1940, os blues ganhavam um caráter cada vez mais urbano, em especial com Big Bill Broonzy e pelo pianista Leroy Carr e o seu guitarrista, Scrapper Blackwell (um modelo cada vez mais recorrente no futuro).

Tornaram-se, assim, mais elaborados e adaptados a um público bem mais amplo, onde muitas mulheres viram o seu protagonismo aparecer e perdurar. Assim seria no caso de Ma Rainey, uma das vozes mais imponentes da história do género, Bessie Smith (a “Imperadora dos Blues”, com uma voz ainda mais pesada, embora bela), Lucille Bogan e também Mamie Smith, que, embora não fizesse parte do grande trio de vozes no feminino, foi a primeira a gravar uma música do género em 1920. Outros casos célebres foram os de Lucille Hegamin e Victoria Spivey, gravando os seus “race records” (uma distinção que era feita para aqueles que, de etnia branca, compravam os discos) com uma grande improvisação melódica, com construções sintáticas distintas e com muitas onomatopeias, que autenticavam o som com a pujança humana e dramática que os blues exigiam desde sempre. Também Sister Rosetta Tharpe, uma instrumentista de vulto na música gospel, iluminou um caminho distante da discriminação racial e sexual, com um folclore capaz de se superar nessa dimensão.

Para acompanhar esta mudança de centralidade para Chicago, nasceram os Bluebird Records, que acolheram imensos discos de jazz e de blues nos anos 1930 e 1940. Muito do boogie-woogie que já vinha do século XIX assentava no piano, mas também nas vozes, tanto a solo, como em bandas e em duos, trios, quartetos ou quintetos. A presença do baixo tornou-se, assim, um destaque crescente, com uma pauta musical quase constantemente reiterada, numa simples chapa, com um só tom, embora sempre ornamentado. Jimmy Yancey abriu as portas desta nova fragrância musical, assim como o trio de pianistas Albert Ammons, Pete Johnson e Meade Lux Lewis, e Pinetop Smith, um dos antecedentes de rock n’ roll. Mais a sul, em Louisiana, nas redondezas de New Orleans, o papel da música clássica misturou-se com o jazz e com a música das Caraíbas para, com piano e saxofone, acolheu o nascimento do jazz, com a ajuda do Professor Longhair e de Dr. John; para além da trepidação melodiosa de Lead Belly e da sua guitarra de doze cordas.

As bandas tornaram-se maiores e mais numerosas, embora também com origens geográficas mais específicas e dispersas, como a Count Basie Orchestra, de Kansas City, no estado de Missouri, e que também contribuíram para a formação dos jump blues. Um ritmo mais frenético, apoiado nas vozes guturais e declamadoras e nos instrumentos de sopro e de percussão para essa passada mais “saltitante”. Ainda no Kansas, Louis Jordan, o “King of the Jukebox”, e a voz de Big Joe Turner protagonizaram este percurso, que ajudou a perspetivar o nascimento do rock n’ roll e do rhythm and blues (R&B, que substituíram os “race records”). Na “West Coast”, no estado da Califórnia, estes jump blues foram fomentados pelo piano mas também pela guitarra, advinda dos ventos do Texas, onde despontou a guitarra de Lightnin’ Hopkins, e que T-Bone Walker soube potenciar da melhor forma.

Depois de tantas turbulências políticas e sociais, que constituíram o pano de fundo das décadas exploradas atrás, chegaram os anos 1950, em que os blues já se tinham ramificado no R&B e em que ganhavam cada vez mais espaço na indústria musical. O seu shuffle era feito cada vez mais à base de instrumentos elétricos, desde a guitarra ao baixo, passando pelo duplo baixo (o seu antecessor), a bateria e a harmónica, recorrendo a amplificadores de voz e de guitarra. Em Chicago, e encaminhados pelas origens do delta de Mississippi, estava Elmore James, o grande “rei” da slide guitar, assim como Muddy Waters, Howlin’ Wolf, Willie Dixon (um dos mais célebres compositores, que escreveu diferentes canções de referência do género (os blues standard), como “Hoochie Coochie Man” ou “Back Door Man”, e Jimmy Reed, com a força das cordas das suas guitarras e baixos e a imensa profundidade das suas vozes. Com a harmónica, e também em Chicago, Little Walter, Sonny Boy Williamson II e Sonny Terry gravavam para editoras distintas, como a Chess Records, a Checker Records, a Vee-Jay Records ou a J.O.B. Records, com a competição da Sun Records, deslocada para Memphis até, também ela, ter subido para Chicago em 1960, após ter descoberto o estelar Elvis Presley.

Entretanto, e com a emergência da música popular americana, em muito assente no folclore do país, notou-se uma grande influência das raízes dos blues em nomes, como Bo Diddley ou Chuck Berry, e a música crioulo-americana do zydeco, um género criado no estado do Louisiana. Fora dos Estados Unidos, e após uma tournée bastante bem-sucedida de Waters no Reino Unido, o contágio foi de tal modo notório que, desde o guitarrista Alexis Korner ao harmónico Cyril Davies, se começou a desenhar o caminho que encontrou a revelação dos Rolling Stones e dos Cream, de Eric Clapton. Em Chicago, mais talento continuava a emergir, nomeadamente com a grande base rítmica que as cordas e a percussão exibiam nas interpretações de Magic Sam, Buddy Guy ou Otis Rush, com a amplificação das guitarras de Freddie King, Magic Slim e Luther Allison, que havia tocado com Howlin’ Wolf. Ainda na herança do boogie, e fixando-se no Mississippi, estava John Lee Hooker e os seus groovy blues.

Pantanoso também se tornou no estado de Louisiana com os swamp blues, mais lentos e alicerçados por ideias crioulas e zydecas, abrindo espaço para que a simplicidade e a estabilidade de Lightnin’ Slim, Slim Harpo, Sam Myers e Jerry McCain se impusesse. Outros nomes eram revisitados e reeditados, como Mississppi Fred McDowell, o que levou a que o norte desse estado se tornasse renovado e reforçado com um boogie hipnótico ao sabor de estruturas musicais pouco convencionais, enfatizando a percussão e o ritmo. Os anos de 1960 trariam bastantes atribulações civis e sociais, principalmente com as reivindicações por parte das comunidades afroamericanas de uma efetiva igualdade social, política, económica, cultural e cívica na sociedade do país. A solidificação do rock n’ roll e o surgimento do soul também agitariam as águas musicais um pouco por todo o mundo, que se tornaram cada vez mais azuis com festivais na Europa e com uma presença cada vez mais assídua no Reino Unido, em que se inspiravam e imitivam as grandes lendas que os blues tinham criado. Abria-se espaço para expressões mais híbridas, que seriam a fundação da world music, com origens indígenas, mas também outras conotadas com vários géneros musicais (o caso do novaiorquino Taj Mahal).

É nesta fase que se torna verdadeiramente reconhecido B.B. King (Blues Boy King), que, à imagem de John Lee Hooker, importou elementos do rock e colaborou com diversos músicos de etnia branca. King seria conotado como “rei dos blues”, o verdadeiro rei, já que criou um estilo de produção de solos de guitarra verdadeiramente único, fazendo as cordas balançar e arquear mais para sons mais robustos e abertos, sem recear as vibrações que daí advissem, os vibratos. Consigo, não dispensava a presença do saxofone, do baixo, da trompete e do trombone e abriu portas a que os blues se tornassem cada vez mais reconhecidos e, de igual modo, capazes de se integrar em várias formas de dar música. Bobby Bland e Albert King fariam isso mesmo.

Como já mencionado, a questão dos direitos civis mexeu muito com a década de 1960 e foi assim que os próprios blues foram revisitados e reinterpretados, crescendo o interesse pelas tradições e pelas raízes musicais e onde nomes consagrados dos acústicos, embora ainda não mencionados, como Mississippi John Hurt, Skip James e Reverend Gary Davis, voltaram. Um trabalho em muito alavancado pelas reedições da Yazoo Records e pelos discos de J. B. Lenoir, que se inspirou nos movimentos de liberdade de expressão dos meados da década de 1960. Com um look renovado e “rock n’roll’zado”, aparecia o grupo de Paul Butterfield, assim como, em Inglaterra, os grandes grupos, como os Fleetwood Mac, os The Animals, John Mayall & the Bluesbreakers e The Yardbirds, onde começou o legado de Jimmy Page, futuro guitarrista dos Led Zeppelin, e o do também guitarrista Jeff Beck. Nascia o blues rock, catapultado pela presença imponente dos The Doors, da Jimi Hendrix Experience, dos talentos de Janis Joplin e da Allman Brothers Band. A alma psicadélica e elétrica cresceu e arrastou-se até ao Texas, onde Johnny Winter e Stevie Ray Vaughan, assim como os ZZ Top, deram-lhe um toque tradicional e enraizado nas origens dos blues. De igual modo, andaram os soul blues, com as aspirações de Otis Redding, de Ray Charles e de Sam Cooke.

Mais perto dos nossos dias, desde Robert Cray a John Mayer trazem uma ideia de progressividade dos blues, que não se fixam nas gerações anteriores, mas que também procuram reinventar-se, nomeadamente ao olhar do indie rock e de muita música local, nomeadamente de proveniências latinas e periféricas. Carlos Santana, por exemplo, assim como nomes, como Joe Bonamassa, Gary Clark Jr., Derek Trucks, Susan Tedeschi, fazem parte de uma nova geração que reverencia as origens, mas que também não deixa de parte a possibilidade de inovar e de se fazer diferenciada. São blues que se consagram com um sentido de revelação, por vezes bíblico, mas mais íntimo e personalizado do que de outro modo. As suas fontes capacitam-lhes de uma alma própria, emancipadora, munida de uma consciência cívica crítica. O seu presente assegura um papel de referência e de identidade para muitas das comunidades flageladas e fragilizadas durante os tempos. Quanto ao futuro, a segurança de um legado permanente e irreverente, de sonoridades azuladas como o céu, mas rentes na terra.

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