A fuga de escravos através d”A Estrada Subterrânea’ de Colson Whitehead

por Miguel Fernandes Duarte,    2 Outubro, 2017
A fuga de escravos através d”A Estrada Subterrânea’ de Colson Whitehead
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Nos Estados Unidos da América, o debate acerca do racismo e da ostracização negra tem cada vez mais holofotes voltados para si, fruto não só da chegada ao poder de Donald Trump e do reerguer de algumas plataformas de suprematistas brancos, mas também de tensões que nunca deixaram de existir no seio da América. Mesmo antes de Trump, já as atenções se viravam para movimentos como o Black Lives Matter, fundado em 2013 em resposta às mortes de diversos afro-americanos pelas mãos da polícia, em casos onde o disparo não teria aparentemente quaisquer motivações que não o medo face ao negro. Negro enquanto cor de pele e negro enquanto conceito fundado na supremacia europeia (e branca) erguida pelo colonialismo e imperialismo europeu, culminando na escravização dos Africanos que, levados para o Novo Mundo, construíram os Estados Unidos da América como os encontramos hoje. Fizeram-no sendo raptados às suas tribos e separados das suas famílias, enviados pelo oceano no porão de barcos negreiros de péssimas condições, em direcção a um local desconhecido onde ser-se negro era equivalente a ser-se 3/5 de uma pessoa, como declara o texto que está na base da independência dos EUA.

Um objecto de trabalho, comprar um escravo seria praticamente equivalente a adquirir um tractor nos dias de hoje. Foi com o suor destes que se plantou, por exemplo, o algodão que tantos lucros deu e proporcionou a ascendência deste país no panorama global. Sendo principalmente cultivado nos estados sulistas, foi por isso um dos principais factores que levou a que estes estados, mesmo quando os estados a Norte já eram abolicionistas, advogassem a manutenção da escravatura, culminando, juntamente com outras razões, na fricção que culminou na guerra civil americana.

Era esse conhecimento da tolerância para com o corpo negro nos estados mais a Norte que inspirava os escravos a querer fugir das plantações a Sul. Era um sonho, essa caminhada para cima. Mesmo que fossem apanhados novamente pelos seus donos, as poucas horas de liberdade que antecederiam tal captura eram a única luz a alimentar esse caminho. O pior era quando, ao serem capturados, não eram poupados à morte, o seu tratamento a servir de dissuasor de futuras fugas.

Neste contexto, mitos espalhavam-se, entre os escravos, da existência de uma rede de ajuda à fuga em direcção a norte. Administrada por brancos abolicionistas, esta “Estrada Subterrânea”, meramente metafórica, encaminharia, de forma encoberta, os negros para norte, em direcção a um futuro em liberdade. Colson Whitehead imaginou-a como sendo um verdadeiro caminho-de-ferro, uma rede de túneis a unir diferentes casas-abrigo clandestinas, e escreveu A Estrada Subterrânea, agora publicado em português pela Alfaguara, livro que lhe valeu vários prémios, de entre os quais o National Book Award e o Pulitzer de Ficção.

Em A Estrada Subterrânea seguimos Cora, primeiro enquanto escrava da família Randall, no estado americano da Geórgia, depois enquanto fugitiva e beneficiária da dita estrada subterrânea, percorrendo, em pequenas locomotivas, túneis de carris que a levam através de diferentes estados, numa fuga à perseguição dos seus antigos donos e também ao prejuízo, quanto mais longe da Geórgia mais escondido, mas na mesma presente.

O livro ganha peso, força e pathos em cada um dos momentos em que encarrila, com a busca e a adaptação a novas condições a ser o motor da narrativa, que parece perder as coisas que tem para dizer assim que se fixa num sítio durante demasiado tempo, mais preocupada em mostrar outras geografias e outros problemas. Esse espalhamento geográfico derivado da própria rede de estradas subterrâneas proporciona ao autor a possibilidade de fazer aquilo em que parece mais interessado: caracterizar a América e as suas diferentes faces, nem todas assim tão diferentes umas das outras quanto isso.

Isto porque nem tudo é o que parece. Na Carolina do Norte, estado abolicionista, onde, encoberta por detrás da proibição da escravatura, está também a proibição da existência de negros no estado, Cora é obrigada a ficar enclausurada num sótão, vendo duma pequena janelinha as execuções não só dos negros que são apanhados, mas também daqueles que os ajudavam a esconder-se. Na vizinha Carolina do Sul, num ambiente que se mostrava aparentemente acolhedor para os negros, percebe-se que há uma campanha de eugenia dirigida às mulheres negras, persuadidas por todos, desde médicos a assistentes sociais, a procederem a histerectomias, ou seja, a retirarem o útero, impedindo a sua posterior reprodução.

Não são só os brancos que se assumem como maus da fita, no entanto. Nas plantações, por diversas vezes somos confrontados com o papel ignóbil dos capatazes, que se transformavam eles próprios em opressores, mesmo sendo parte dos oprimidos. Outros suscitam a incompreensão por parte de todos, caso do negro Homer, que ajuda Ridgeway na captura de escravos fugidos, e que nunca justifica ao longo da obra porque o faz.

Através da história de Cora, somos forçados a tomar contacto com a história global de todos os escravos, com todas as adversidades que se lhes apresentavam, desde a vida na plantação à liberdade, que, tantas vezes ao longo do percurso pela “estrada”, parecia não ser melhor que a vida que se tinha antes enquanto escravo, onde ter um metro quadrado de terra para plantar coisas suas dava azo a violações. A busca por uma melhor condição não tem fim à vista, bifurca-se em diferentes caminhos, comboios que vão para todas as direcções, que percorrem todas as geografias e que, melhores ou piores quando comparadas umas com as outras, não encerram ainda o futuro áureo que, tanto Cora como nós, imaginamos poder alcançar.

A Estrada Subterrânea provém dessas contradições inerentes à ideia de América. O caminho já vai longo desde o momento em que Cora se lançou para fora da plantação, acompanhada da esperança proveniente da sua mãe ter ela própria fugido (e da raiva de não a ter levado consigo) e da companhia de Caesar, mas a discriminação racial mantém-se, institucionalmente e no prejuízo que muitos carregam ainda consigo. Provém daqui, sem dúvida, grande parte da atenção dedicada a esta obra que, mesmo bem executada, ganha sobretudo importância devido à actualidade de um tema que está a mais de um século de distância.

Infelizmente, a tradução revela uns quantos problemas (enunciados em detalhe por João Pedro Vala, no Observador), que são tão incoerentes com o texto original que é difícil dizer se o problema é o pouco conhecimento da língua ou simplesmente a pressa para entregar um trabalho que precisaria de mais cuidado. Torna-se ainda mais estranho quando a linguagem do livro é, em si mesma, simples, sem um grau de complexidade que possa dificultar a tradução. Felizmente parece que a editora já está a proceder a nova revisão para uma próxima edição. Entretanto, ficamos com esta, à medida que imaginamos como seria o mundo se não se tivesse enveredado por um caminho de exploração do corpo de outros que, iguais a nós, tiveram o azar de nascer diferentes.

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