A fé e o existencialismo em Soren Kierkegaard

por Lucas Brandão,    25 Dezembro, 2020
A fé e o existencialismo em Soren Kierkegaard
Soren Kierkegaard / DR
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Sorien Kierkegaard tornou-se um dos filósofos de maior reconhecimento no Ocidente, nomeadamente por se tornar o primeiro grande filósofo existencialista. Debruçou-se sobre aspetos da ética e da teoria cristã, o que foi o fundamento do seu percurso filosófico, para além da realidade humana pura e dura. A presença de Deus é, assim, uma permanente na sua conversa com as referências da existência humana e é usada como um ponto de interrogação perante as vicissitudes emocionais e mentais do ser humano. A discussão da verdade e da fé em torno da humanidade ajudou-o a construir um discurso único e diferenciado, propenso a colocar em dúvida ideias perfeitamente dadas como certas e imaculadas, abrindo um espaço totalmente novo de reflexão e de discussão.

Kierkegaard, dinamarquês, viveu entre 1813 e 1855, principalmente na capital do seu país, Copenhaga. Kierkegaard tornar-se-ia mestre em Filosofia com uma tese que se debruçou sobre Sócrates, pensador grego, e sobre a ironia socrática em comparação com a filosofia idealista (“On the Concept of Irony with Continual Reference to Socrates”, de 1841). Kierkegaard seria, assim, dos primeiros, depois de uma reflexão profunda sobre a existência humana, a afirmar que a essência é somente construída pela existência: isto é, o pensamento humano e a sua concretização em algo exige que o ser humano exista e que essa existência, no pano de fundo, reúna os valores éticos, poéticos, dialéticos e religiosos para que, por fim, se forme a essência.

O produto da realidade requer, assim, que haja existências humanas que concretizem os seus mais diversos aspetos. Porém, não se descurou a abordar o absurdo como algo que existe nas ações e nas escolhas dos seres humanos, isto por entrarem em contradição com a liberdade humana. Essa absurdidade implica que, em caso de existir uma crença para lá dela mesma, e descartada a realidade do suicídio, se dê um “salto de fé” até ao intangível e aquilo que não é constatável. É um “salto” que, não obstante, se torna necessário, já que aceitar o absurdo é meio caminho para a “loucura demoníaca”.

No fundo, o absurdo é o agir através da fé, o agir mediante o reconhecimento da presença de Deus na verdade eterna, que é descoberta e posicionada no tempo. É a fé que transforma o absurdo em algo que não o é, já que o absurdo é uma categoria negativa do divino. As obras que abordam esta dimensão em maior concretude são “O Desespero Humano” (1849, com o pseudónimo Anti-Climacus), onde se aborda o desespero de percecionar o absurdo, que impele à crise filosófica que acaba por conduzir a esse “salto de fé”; e a sua autobiografia “O Ponto de Vista do Meu Trabalho como um Autor”. Outras obras cruciais no desvelar deste discurso são “Ou/Ou” (1843, a sua primeira grande obra), onde Kierkegaard contrasta uma perspetiva puramente estética e subjetiva com a perspetiva ética e cívica, coletiva e onde é a fé que pode salvar o ser humano do dilema em que se coloca na sua comparação.

É a mesma fé (cristã) que é denunciada em “As Obras do Amor” (1847), onde esclarece e releva o amor incondicional em relação ao amor carnal e dos entes queridos. A esperança, ou seja, a possibilidade do ser humano ser e fazer o bem, e o amor cristão são as ferramentas que possibilitam que o desespero possa, enfim, ser superado, numa decisão que se torna eterna. É a eternidade que o faz tornar um “cavaleiro de Deus”, colocando toda a sua fé em Deus e se torna um agente independente e livre no mundo, abraçando a vida tal como ela é. “Temor e Tremor” (1843, escrita com o pseudónimo Silento) é a obra que melhor capta esta noção, já que retrata o percurso de Abraão até ao momento em que se torna validado eternamente pela presença divina e pela sua resignação térrea em prol de Deus.

O peso da ansiedade no abdicar da vida mundana acaba por advir desse medo de uma entrega que se quer total e comprometida, entregue à fé, definindo a sua própria existência como tal. Aliás, um dos seus receios prendeu-se, precisamente, com a questão de assumir o cristianismo, já que muitos eram aqueles preocupados em caraterizá-lo e nem tantos aqueles que o procuravam, simplesmente, absorver e de dar esse já referido “salto de fé”, confinando-se nesse conflito interno. É, assim, uma mundividência repleta de paradoxos aquela que Kierkegaard identifica e analisa e aquele que é mais flagrante é, precisamente, a união transcendental com Deus e dos seres humanos com a figura de Jesus Cristo. É uma relação que, como referido, transcende as referências morais, as estruturas sociais e políticas e as normas comunitárias e exige escolhas independentes e decididas sobre a forma como viver, superando a ansiedade permanente da indecisão. Para Kierkegaard, Deus é sinónimo de amor, já que a prática do bem é, por si só, a expressão do divino, numa síntese entre a finitude e o infinito; já o pecado não é mais do que, perante o desespero em relação ao absurdo, escolher um caminho que vai contra a vontade divina.

Todas as ações são, assim, merecedoras do escrutínio divino, devendo os seus perpetradores estarem sensibilizados para as potenciais consequências dessas mesmas ações, já que representam aquilo que é o bom ou o mau. No entanto, isso não implica uma leitura e uma interpretação rígidas da Bíblia, tornando o cristianismo um dogma. Pelo contrário, defende essa descoberta do divino como um processo livre e subjetivo, independente e livre das ansiedades que são impelidas por essas expressões dogmáticas e impositivas de uma forma de olhar e de encontrar Deus.

A falta de coragem de dar o tal “salto de fé” e de encontrar uma vida apaixonada e comprometida acaba por ser o grande problema existencial identificado, denunciando o paradoxo do finito e do infinito, que criam a tal ansiedade (a angst) e o medo na difícil demanda da criação do ser e de encontrar o sentido da vida. Não é mais do que uma verdadeira crise existencial, que implica o “salto” que não é diferente daquele que se observa na Bíblia e que é (ou não) tomado por Adão, perante a tentação, e por figuras, como Noé, Abraão ou Moisés. É o momento em que a fé é posta à prova, perante uma realidade incerta, em que o olhar para dentro e a ascensão espiritual e ética se pode concretizar com essa crença em Deus. É uma relação direta, que se encontra no interior de cada um e não na imitação ou a partir de mediadores, tornando-se algo idealizado, o que não é, verdadeiramente, aquilo em que a fé consiste.

Se te casas, arrependes-te; se não te casa, arrependes-te também; cases-te ou não te cases, arrependes-te sempre. Ri-te das loucuras do mundo e irás arrepender-te; chora sobre elas, e arrependes-te também; ri-te das loucuras do mundo ou chora sobre elas, e de ambas as coisas te arrependes; quer te rias das loucuras do mundo, quer chores sobre elas irás sempre arrepender-te. Acredita numa mulher, e irás arrepender-te, não acredites nela e arrependes-te também; acredites ou não numa mulher, arrependes-te de ambas as coisas. Enforca-te, e arrependes-te; não te enforques, e na mesma te arrependes. É esta, meus senhores, a soma e substância de toda a filosofia.

“Ou/Ou” (1843)

Uma das obras que mais toca na questão da angst é “O Conceito de Angústia” (1844, sob o pseudónimo Vigilius Haufniesis), onde o identifica como um medo sem foco e como uma predisposição para o pecado, embora também possa servir como uma forma de identificar a verdadeira identidade humana e a verdadeira liberdade, tornando o ser humano consciente da sua existência. Contudo, esse rol de possibilidades infinitas para a vida aprofunda essa sensação de insegurança e a infindável responsabilidade a si inerente, em especial a partir das decisões que se tomam durante o decurso da vida, definindo, efetivamente, aquilo que se é.

É este o caminho para o encontro com a autenticidade pessoal, que depende do encontro com a fé autêntica e de uma verdade para consigo mesmo, de integridade. É uma escolha, uma decisão, que se inspira na experiência pessoal e na interpretação daquilo que são os factos e de uma aceitação do que é a realidade. Uma experiência pessoal que contribui para que a subjetividade possa ser manifestada e capaz de tornar cada ser humano como cada qual. Isso permite que, ao mesmo tempo em que há um encontro com a fé, se possibilite uma plena tomada de decisões sobre o que é e o que faz, encontrando-se com uma definição de si mesmo mais clara e distinta.

Naquilo que toca a comunicação propriamente dita com Deus, Kierkegaard aborda a “distinção qualitativamente infinita”. Isto trata-se da distinção muito clara da finitude e da limitação humana em relação à eternidade do divino, que fundamenta a impossibilidade de se estabelecer uma comunicação direta com Deus. Por serem infinitamente diferentes, a comunicação entre ambos dá-se somente de forma indireta, já que o tempo e a eternidade não são coadunáveis e se dão em prismas distintos, para além de serem mensagens que têm de ser experienciadas e não só ouvidas. Porém, Kierkegaard também denunciaria uma apatia na sua geração, que esvaziava os conceitos éticos de validade e de valor. Embora usados, estavam, já, ausentes de uma verdadeiro significado e de uma importância real naquilo que é o ser e o viver. Por se tornar uma vida tão indolente e oca, as emoções e as ações são parcas e pouco enriquecem a vivência dos indivíduos, algo que o dinamarquês criticava. Desagradava-lhe o abdicar das tarefas mais simples e modestas, tirando-lhes o proveito de perspetivar uma relação elevada e autêntica com a divindade.

Sobre a morte, Kierkegaard discerniu que se trata de algo inevitável e, de um ponto de vista temporal, imprevisível. Fundamentalmente, havia a necessidade de cada ser humano reconhecer a sua verdade e de assumir a morte como algo que irá acontecer, de forma a que se possa viver de forma intensa e apaixonada, contrariamente àquilo que a sociedade, a seu ver, insistia em refutar. A sociedade, que inclui o idealismo ao qual tanto se opõe e sobre o qual escreve (como Johannes Climacus) em “Post Scriptum Final Não-Científico às Migalhas Filosóficas”, ensaio de 1846, fecha-se em dogmas que se opõem à liberdade individual e ao próprio atingir de um conhecimento próprio e subjetivo, ideia que defende em “Fragmentos Filosóficos”, de 1844 (com o mesmo pseudónimo). É uma objetividade que, ao fechar-se em si, não permite que o ser humano saia da sua posição alienada e consiga, enfim, a partir de um padrão de valores renovado e de uma bagagem de conceitos éticos como referências morais, concretizar a sua ascensão à etapa religiosa, ultrapassadas a etapa estética (na qual a sociedade subsiste) e a ética (onde os primeiros passos de uma vida com um rumo delineado e com sensibilidade para o que é bom e mau, para além de definir um compromisso para consigo e com os seus demais).

Soren Kierkegaard procurou problematizar a ética humana à luz da fé cristã. Deus assumiu o papel principal no seu discurso filosófico, procurando, ao mesmo tempo, compreender os fundamentos da existência humana, à luz de conceitos tão vastos, como os do absurdo, do desespero ou do “salto de fé”. Entre muitos outros conceitos, desenvolvidos em muitas obras que compõem o seu recheado repertório literário, o dinamarquês inspirou-se na sua experiência pessoal e na convivência com a igreja do seu país para denunciar a ética cristã sua contemporânea e perspetivá-la de uma forma mais prática e direta, sem a necessidade de mediação ou de idealismos. Para Kierkegaard, Deus está ao alcance de qualquer um, por mais desesperado e angustiado que se sinta. Para isso, porém, é preciso fazer um salto em comprimento ou em altura, se bem que para dentro. Para o encontro, nas profundezas do ser e da alma, da explicação última da existência humana: a fé e Deus.

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