A estreia de Ana Margarida de Carvalho no conto: ‘Pequenos Delírios Domésticos’

por Miguel Fernandes Duarte,    20 Dezembro, 2017
A estreia de Ana Margarida de Carvalho no conto: ‘Pequenos Delírios Domésticos’
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Ana Margarida de Carvalho consagrou-se no panorama literário nacional com os seus dois romances já publicados, o de estreia, Que Importa a Fúria do Mar, e o seu segundo, Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato, ambos vencedores dos prémios APE nos respectivos anos, 2013 e 2016. Aguardava-se, portanto, com alguma expectativa, o regresso da autora, que nos chega desta vez com os seus primeiros passos no formato do conto, em Pequenos Delírios Domésticos, título retirado de uma canção de Sérgio Godinho, editado pela Relógio d’Água.

Entre dois poemas, surgem-nos doze contos, mas ainda antes há espaço para um primeiro texto, o único que não é ficção, Chão Zero, uma elegia à casa dos bisavós, ardida nos recentes incêndios de Outubro de 2017. Não obstante a carga emocional que traz consigo, marca-nos ainda mais pela proximidade do acontecimento, o luto é recente e o texto um relato das sensações da autora perante a casa: “Tenho de reportar a minha infância ardida e dão-me um formulário da Protecção Civil”.

Uma das fragilidades da colectânea que começa realmente depois deste texto, acaba por ser, infalivelmente, a dispersão de temas entre contos, principalmente porque há também uma elevada disparidade de interesse entre eles, os primeiros mais dedicados a temas humanitários da actualidade, como o caso do senhor Saadi, um refugiado sírio que na verdade não se chama Saadi, em Do inferno ninguém regressa, confinado a um lar onde, apesar das boas intenções, não lhe é permitida a saída; ou a história de um jihadista português regressado a casa, em A Troca, que termina com danos sobre um cardume de tainhas.

Ana Margarida de Carvalho / Fotografia de Fernando Dinis

O conto que dá título ao livro, Pequenos Delírios Domésticos, onde a narradora descobre que a governanta da sua casa de infância escondera durante toda a sua vida dois refugiados judeus da segunda guerra mundial no sótão, começa a indiciar uma mudança de tema para um cariz mais idiossincrático e hermético que marca os restantes contos da colectânea. Uma vida de Centrifugação, memória da infância passada a deleitar-se com a máquina de lavar roupa, enquanto censurado pela empregada doméstica delatora da PIDE, um dos melhores contos do livro, dá início a esta segunda secção onde nos contos, diferentes dos primeiros, e melhores, se acrescenta, à crítica aos tempos de hoje que também está presente nos primeiros, um elemento de absurdo reminiscente de uma certa vaga de contistas sul-americanos.

Por entre um conto onde o rio Tejo é transformado em megalómano parque de estacionamento para a cidade de Lisboa, ou outro onde um condenado à morte morre envenenado antes de sofrer a injecção letal, dois contos sobressaem. O primeiro, Os elefantes têm sismógrafos nos pés, é retrato de uma ilha inserida em profundo nevoeiro húmido, para onde um homem se evade na tentativa de escrever as falsas últimas palavras de uma falecida, a pedido da própria, para que a recordem na missa do primeiro ano do seu falecimento. O segundo, O nome que te deram antes de nasceres, sátira à filosofia do empreendedorismo e à religião, fala-nos de um “um geek no ringue das startups unicórnios, de mil milhões de dólares, (…) apanhado à saída do Técnico para ser CIO de uma empresa sedeada no Arizona”, que inventara uma aplicação que consistia em atribuir a cada angústia “a melhor divindade de entre todas as religiões, crenças, igrejas, cultos, devoções, búzios, xamãs e orixás do planeta”, selecionando, consoante a localização do utilizador, qual “a conduta divina mais adequada à apoquentação”. Obrigado a regressar à sua terra natal, Fátima, após a morte da sua mãe, tem de cuidar da irmã mais nova que, portadora de uma deficiência cognitiva, é apenas capaz de exclamar “Nossa Senhora!”

Não descurando o seu talento para a narrativa breve, é precisamente nos contos de maior tamanho, aqueles onde há mais espaço para a narrativa se entrelaçar entre si e, posteriormente, se voltar a colocar em ordem novamente, que as qualidades que já tinha evidenciado nos seus romances anteriores têm mais espaço para se revelar nesta nova luz. Não é que nos contos mais curtos o estilo torrencialmente arrojado da autora não funcione, mas dá por si a não dar espaço para respirar a uma narrativa, que, em versão grande, tem como se espraiar. Nos melhores momentos do livro, Ana Margarida de Carvalho, é capaz de fazer aquilo a que se propõe: ser arrojada, virtuosa, e pôr-nos a pensar sobre o mundo de hoje, e só por isso já vale a pena ler este livro.

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