A efemeridade da vida, em ‘Babilónia’, de Yasmina Reza

por Miguel Fernandes Duarte,    14 Agosto, 2018
A efemeridade da vida, em ‘Babilónia’, de Yasmina Reza
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Diversas vezes o grotesco sucede ao mais vulgar quotidiano, principalmente quando aquilo que, noutras circunstâncias, poderia ser banal se transforma na fagulha que acende o rastilho maior. É precisamente nesse desmoronamento que se empoleira a narrativa do vencedor do Prémio Renaudot de 2016, Babilónia (Quetzal), o mais recente romance da francesa Yasmina Reza, à semelhança do que acontece também com a sua peça de teatro Deus da Carnificina, tornada famosa pela adaptação cinematográfica que chegou, em 2011, pelas mãos de Roman Polanski. Tal como nesta, um ponto de discórdia relativamente banal descamba numa discussão trágica.

Precisamente por isso Babilónia começa calmo, sem indicações da tragédia por vir, e é num ambiente delico-doce melancólico que a autora pinta o retrato das personagens, de entre os quais a narradora, Elisabeth, engenheira de patentes sexagenária, que, agora que viu a sua mãe morrer e o filho sair de casa, sente ter um cronómetro ao ouvido, não conseguindo deixar de pensar e repensar em tudo o que ficou para trás e em como tantos anos passaram tão depressa.

O título, Babilónia, remete ao salmo – “Junto aos rios da Babilónia, sentamo-nos e choramos, ao nos lembrarmos de Sião” -, e as personagens sentem-se assim mesmo, exiladas: da sua infância, da sua juventude. Não conseguem deixar de pensar no que ficou para trás e apenas guardado nas suas memórias, e, ao morarem em Deuil-l’Alouette, um subúrbio imaginário de Paris, a vida residencial pacata que levam só lhes deixa saudade da vida agitada de outrora.

Elisabeth pensa numa relação passada da sua juventude, com um homem que já não faz sequer parte deste mundo, lembra-se dele ao rever o livro The Americans, com fotografias de Robert Frank, que repousa agora na sua mesa de cabeceira, após anos sem lhe tocar. Em Elisabeth o que essas fotografias incitam não é a eternização de um momento, mas sim o seu carácter efémero, afinal aquelas fotos serão sempre apenas um pedaço de papel incapaz de encerrar a vida das pessoas retratadas. São objectos falsos que não retratam a realidade, uma farsa, quase como uma encenação, como Reza tão bem evidencia na reencenação final da tragédia em fotografias.

Yasmina Reza

Neste ambiente bucólico, Elisabeth decide organizar uma festa de Primavera em sua casa, é altura de voltar a dar alguma actividade à sua vida, e convida, além de alguns dos seus amigos, os seus vizinhos de cima, Lydie, uma musicoterapeuta excêntrica, e o seu marido Jean-Lino, com quem recentemente travara uma amizade, ainda que não assim tão íntima, já que se tratam ainda por você.

Os preparativos para a festa são grandiosos, Elisabeth fica obcecada em ter tudo perfeito e tenta arranjar copos e cadeiras onde consegue, não quer deixar ninguém de pé a beber vinho num copo de plástico, e é a partir destes numerosos objectos que pontuam Babilónia – um naperon, as cadeiras, uma mala vermelha, um chapéu, um casaco, os copos -, assim como através das fotografias, que, num estilo elegantemente seco, Reza nos leva pelas suas divagações sarcásticas. A forma como parte do concreto para, repentinamente, num “turn of phrase”, partir para uma consideração geral é, aliás, uma das melhores características da prosa de Reza neste Babilónia.

A festa de primavera, felizmente, corre às mil maravilhas e todas as precauções de Elisabeth são capazes de conter possíveis problemas. Excepto que a tragédia se dá não durante a inocente festa de primavera entre amigos, mas depois. Quando Elisabeth e Pierre, o seu marido, se preparavam para dormir, Jean-Lino toca-lhes à porta e dá-lhes a notícia de forma completamente alheada: sem querer, em plena discussão, tinha matado Lydie, a sua mulher.

Apesar disso, o crime que envolve toda a narrativa não traz ao livro qualquer pendor policial. Yasmina Reza não está tão interessada nas motivações de uma morte quanto na efemeridade de tudo. As vidas vêm, vão, e nada de muito relevante se dá nelas. No fim, desaparecemos e pesamos pouco sobre o mundo, e o que resta são os momentos falsos encapsulados nas fotografias que deixamos para trás, como a de Jean-Lino e Lydie durante a festa de primavera, felizes.

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