A ecologia e a humanidade dos sons

por Romão Rodrigues,    22 Julho, 2019
A ecologia e a humanidade dos sons
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Reacionário. Vocábulo “epidémico” no tempo que urge. Quer dizer, a história da Humanidade sempre esteve confinada a este espírito. Ainda hoje é o dia em que imperam o despótico e o retrógrado. O cerne da questão localiza-se na maior ou menor sagacidade do intelecto. Sim, a minha pessoa é um exemplo ilustrativo desta matriz racional, mas, em minha defesa, profiro que o desígnio é bom e o corolário magistral. O interruptor da raiva súbita é facilmente acionado quando algo se opõe ao procedimento normal da minha lucidez. E a tecnologia e todos os seus protótipos mobilizam-no constantemente. Defender, acerrimamente, que a “tecnologia é o maior dos progressos” é erróneo. Possuo, comigo, a maior das evidências. Passo a exercitar:
Nele está presente a partícula cuja (in)definição me deixa ainda mais enfurecido. Refiro-me à música e, posteriormente, ao festival de verão. A sua dimensão sociocultural transcende qualquer amante genuíno de música e essa, no meu peito, é ardor, é vivacidade, é flama. Estrear-me-ei, este ano, no Vodafone Paredes de Coura e avidez, desassossego e propensão ébria são termos que representam o estado de alma em que vivo desde a primeira instância em que contemplei o cartaz.

2016 sinalizou a rebelião espiritual. Os concertos de Robert Plant, Pixies e Biffy Clyro resvalaram o sublime, a companhia sintonizou a dita vibe e os momentos grifaram-se para sempre no pequeno compartimento inscrito no peito. O segundo dia do NOS Alive suscitou em mim o interesse para a tecnologia lídima e segredei com os meus botões: se um dia reunisse um grupo capaz, interligando preferências musicais, e partíssemos à descoberta deste mundo sem retorno, deste trilho emocional sem volta marcada? Observando a disposição dos acampamentos, a desinibição dos estrangeiros e a naturalidade interativa que mantinham com o resto dos festivaleiros e a conexão existente traduziram uma espécie de vínculo, um acordo perpétuo materializado fixado no ambiente onde o zénite e a terra caminham de mãos dadas.

2019 profetiza a confirmação de um sentimento (ainda) enigmático. A corporação foi gerada ao longo de um frenético ano em Vila Real. Os envolvidos encerram em si a experiência da coisa. Acontecimentos cândidos, sem qualquer tipo de maquineta, sem registar fotograficamente concertos, sem redes sociais, sem tecnologia. Guiaram-se, no meu entender, pelo bucólico da coisa: tardes sintonizadas no decurso do rio com o sonoro ao agrado (claro!), numa amálgama de acampamentos, refeições dispostas em mesas repletas de conservas e comida rápida, guitarradas ao pôr e nascer do solo, em círculos de gente conhecida ou não, movidos pelo vapor da amizade e da afeição ao grande lampejo humano, a música e, no término dos concertos, novamente a edificação da fraternidade traduzida nas designadas after parties. Desde o primeiro têtê à têtê que o hermetismo e a ânsia de viver o que ainda não vivi me acompanham. A narrativa de trechos festivaleiros causam a sensação de beber do desconhecido imediatamente. Sorriso rasgado na face, júbilo e comoção no derrame. Trespassaram a magia, algemando-me.

Eis a essência do modus operandi boémio. A música é isto: partilha, euforia, utopia, êxtase. Claro que a colisão com a realidade irá certamente ser díspar, nem que seja na mais exígua das situações. Ouvir e sentir são sensações discrepantes. Porém, creio no que me relataram. Um festival faz-se das pessoas que o frequentam, da disposição com que cada indivíduo assenhoreia, dos limites emocionais que pretendemos extrapolar e das conexões que salvaguardamos e que possam dali emergir. Tudo sob a alçada de sons que circunscrevem o ciclo vital de cada um. A maior das invenções, aliada à que a obedece, quebranta a indefinição que é a tecnologia. Uma vénia ao amor da minha vida, à música!

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