A decepção de ‘Confissão de um Assassino’, de Joseph Roth

por Miguel Fernandes Duarte,    2 Abril, 2018
A decepção de ‘Confissão de um Assassino’, de Joseph Roth
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A sociedade é tecida através de ilusões. A natureza humana, esse misto de genialidade e malvadez, impede que nos distanciemos do nosso próprio egocentrismo, marca inevitável da nossa maneira de estar no mundo, enquanto se alimenta das ilusões que criamos para justificar esse nosso foco em nós próprios, e essa é apenas uma das mentiras que contamos a nós próprios para conseguirmos prosseguir o nosso caminho neste mundo.

Em Confissão de um Assassino, o livro do austríaco Joseph Roth recém-editado pela Cavalo de Ferro, temos filhos que afinal não são filhos, temos príncipes que afinal não são príncipes, temos até assassinos que afinal não são assassinos. Ao cabo de uma noite, um homem conta, num restaurante de exilados russos, a sua história de vida, o porquê de ter matado e mesmo assim se considerar um bom homem. Agente da Okhrana (a polícia secreta do Czar), Golubchik conta como foi criado filho bastardo, impossibilitado de assumir o nome do seu pai biológico, o príncipe Krapotkín, e sobre como esse eterno ódio que manteve ao filho “oficial” do príncipe, que afinal nem sequer era filho biológico do mesmo, o leva numa torrente de más decisões e de más acções, culminando num assassinato.

Golubchik, sempre à procura de uma redenção, vê constantemente barreiras impostas ao seu caminho que o obrigam a desviar-se novamente para o caminho do mal. Não é que um fundo mau lhe seja inerente, mas há sempre algo que o impede de se melhorar enquanto ser humano, quer sejam as constantes aparições de Lákatos, seu amigo desencaminhador, quer seja a paixão por uma mulher que o leva a não conseguir desviar os olhos para outro lado se não para ela.

Joseph Roth em Berlim

Se no primeiro plano parecemos estar perante uma narrativa à la Dostoiévski, através da intensidade dramática usada para explorar a natureza humana, o livro de Roth acaba por ficar aquém, nomeadamente por se envolver em todo um número de incoerências e incongruências. Seria talvez possível conceber toda uma elaboração teórica acerca do teor voluntário de tais incoerências, mas face a uma fruição do livro que acaba claramente afectada com as mesmas, tal torna-se inevitavelmente secundário. Porque se o objectivo acaba por ser atribuir à particularidade de Golubchik todo um carácter global, seria necessário que, em primeiro lugar, a narração de Golubchik não roçasse, em determinados momentos, a franca banalidade.

Se por entre descrições tão minuciosas e um enquadramento inicial tão perfeito, Joseph Roth escreve mal, somos tentados a acreditar que existirá uma qualquer razão de ser para que tal mudança tão evidente nos seja apresentada. Mas Roth, que exibe muita mestria enquanto escreve pela voz do narrador que ouve a história contada por Golubchik, ao passar para a voz do assassino, de forma intencional ou não, adquire um teor tão atabalhoado e desorganizado que atinge um ponto em que essa encarnação da voz da personagem não tem como não ser má escrita, e tal torna-se ainda mais frustrante por ser evidente que o escritor é capaz de fazer bem melhor. Para alguém que é tido como um dos maiores escritores do Império Austríaco, tal não deixa de ser decepcionante. Resta, portanto, esperar que melhores exemplos existam da mestria do autor.

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