A constante de Galileu

por José Navarro de Andrade,    16 Abril, 2019
A constante de Galileu
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Para dar um exemplo: Galileu seria hoje tão ou mais maltratado do que foi o seu tempo.

A insolência de Galileu foi irrestrita e profunda. Em primeiro lugar afrontou todo a saber dado como adquirido, seguro e insofismável. Convém não diminuir este desafio com a prosaica caricatura do cientista humilhado por autoridades presunçosas e prepotentes. É certo que a sabedoria vigente à época se cristalizara em dogmas e defendiam-na instituições estabelecidas como dominantes. Mas tal posicionamento fora ganho e consolidado ao longo de séculos de controvérsia, exposições e arguições, aperfeiçoamento conceptual, refinando os princípios e os corolários de um modelo sofisticado e satisfatório de conhecimento da realidade. Os adversários de Galileu não eram portanto uns tolos, mesmo que este nos seus diálogos – platónicos –, por puro desplante, tenha posto na boca de um Simplício as teses por eles esgrimidas.

Em segundo lugar a desfaçatez de Galileu foi ao ponto de pretender desbancar evidências empíricas. Mas que parvoíce é esta de desmentir o que se “vê claramente visto,” o que é verificável e mensurável – o Sol a descrever diariamente um arco no céu em torno da esfera terráquea?

Como pode alguém contradizer uma observação partilhada universalmente? Que falta de bom-senso…

O terceiro aspecto da insubordinação de Galileu é o mais abstruso e por conseguinte o mais ousado. Não faz sentido virar ao contrário a ordem do mundo, pretender impugnar a inteligência acumulada, a prática homologada, a cultura convencionada e o próprio senso-comum tão só com um argumento operacional.

Meu caro leitor, aqui chegados manda a prudência que te avise: doravante correrás o risco de te sentires insultado.

Vamos lá a ver: em nome de quê afirmas também tu que a Terra gira à volta do Sol?

Desfechar esta pergunta a meio de uma discussão garanto-te que é infalível em causar estupefacção no teu arguente, o qual é possível que replique: “está provado cientificamente.” Hás-de reparar que tal resposta, assim sem mais, coloca-o inapelavelmente ao lado dos antagonistas de Galileu, dos conformistas que aceitam com passividade caprina a informação corrente e comumente validada. Não passa de um acto de fé. Por isso incorre no equívoco maior de enterrar o debate no funesto lodaçal da crença. As conversas entre “acreditar” e “não acreditar” em matéria gnosiológica depressa desandam em teorias da conspiração – na medicina, na dietética, na agricultura, na economia, por exemplo, o obscurantismo tem ganho espantosa tracção – tão ridículas quanto indigentes, mas irredutíveis como é inerente às convicções.

Retorquir “está provado cientificamente”, sem demonstração e como se a certeza valesse por si, revela também falta de curiosidade, que é o germe do conhecimento. Não te incomoda aceitar como verdadeira uma explicação contrária aquilo que constatas? Se com tanta frequência recorres à experiência sensível para sustentar as tuas opiniões – “então não se está mesmo a ver que…?”, costumas dizer – porque diabo neste caso não confias no que os sentidos testemunham? Porque admites sem estranheza que deves desconfiar deles?

Recordo-te então que Galileu esteve em vias de lhe purificarem o espírito segundo o testado método da assadura das carnes porque afirmou o heliocentrismo como exacto pelo facto pueril e subsidiário de dar mais jeito às contas… Com Sol no centro calculava-se o movimento das estrelas com maior rigor, elegância, simplicidade e previsibilidade. E para aumentar o escândalo outra prova não apresentava senão a matemática. Com tão económico e transparente raciocínio, desanuviado de digressões especulativas, sem arrimo nos textos canónicos e despojado de tradição, não admira que se tivesse visto em palpos de aranha perante as doutorais e eclesiásticas autoridades.

Mas cabe também recordar que quotidianamente assumimos mais certezas infundadas do que julgamos, agarramo-nos demasiado a elas sem lhes perceber esse defeito, fiamo-nos sobremaneira no que é intuitivo, repugnamos o incómodo das ideias contra-intuitivas. Sobretudo temo-nos em demasia como esclarecidos no mesmo passo em que absorvemos os lugares-comuns proliferantes e daninhos que nos são incutidos pelo império da opinião.

Sim, ao cabo destes séculos os critérios de Galileu continuam a ser rotineiramente desprezados.

Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.

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