Os 30 melhores espectáculos de teatro de 2019

por Comunidade Cultura e Arte,    27 Dezembro, 2019
Os 30 melhores espectáculos de teatro de 2019
Ilustração de Carlota Real / CCA
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2019 foi um ano marcado por protestos no sector das Artes – devido a desentendimentos entre um Ministério que insiste em ficar atrás da Europa no que diz respeito a compreender que a Arte é a fundação de um país – sendo a Arte que se faz no Presente a sua garantia de continuidade; entre uma plataforma de atribuição de apoios, a DGARTES, sem noção da relevância de certas companhias, nomes e trabalhos no panorama português, (ainda que à maioria da população essa relevância pareça apenas espectro de snobes e intelectuais); e entre os Artistas, que vivem dos seus conceitos e execuções, que têm um preço, porque o tempo e o investimento pessoal e material (ou seja, o trabalho) são merecedores de recompensa financeira num estado democrático.

A descentralização das artes ainda soa a utopia distante, portanto não é de surpreender que seja em Lisboa e no Porto, onde reside a maioria do capital, das formações e do panorama artístico em geral, que se façam espectáculos com a maior relevância nacional e, nalguns casos, internacional. Uns de nicho, outros absolutamente pop, mas de um cuidado e génio de relevar. Aqui estão os nossos trinta de muitos que poderiam ser tantos outros.

30. O Dia do Juízo, de Cristina Carvalhal
Uma narrativa de Orvath acerca dos comuns desígnios da injustiça, com piscadela de olho à desatenção que a tecnologia presente provoca no eu, ficando, obviamente, a verdade das coisas lesada.

29. História Ilustrada do Teatro Português, de João Telmo & Martim Pedroso
Docudrama e compêndio da (inexistente?) História do Teatro português, em tons de escárnio e maldizer, da pompa de veludo e carne do povo revisteira. Deliciosamente incompleto.

28. Civilização, de Ligia Soares
Tentativa do incentivar à acção do espectador, normalmente passivo, entre o convite e a provocação, e tiro certeiro aos burgueses refastelados.

27. Dave Queda Livre, de Tiago Lima
Baseado na obra de David Foster Wallace e assente na tragédia carregada pelo actor David Esteves, estreia positiva de Tiago Lima numa encenação repleta de códigos teatrais bem explorados.

26. As Cadeiras, de António Pires
O texto absurdo de Ionesco interpretado pelos tragicómicos (e dos dos melhores actores com mais de 65 anos em Portugal), Carmen Santos e Luís Lima Barreto.

25. Frei Luís de Sousa, de Miguel Loureiro
Adaptação fiel da obra das obras do Teatro português, pela mão eficaz de Miguel Loureiro, com uma luz que parecia ter sido encomendada por Almeida Garrett, com uma interpretação estrondosa da, sem par em Portugal, rainha da composição, Maria Duarte.

24. Nina, Nina, de Mariana Magalhães & Sofia Santos Silva
Confronto ficcional entre a aspirante a actriz Nina de A Gaivota de Tchekhov e o génio do soul Nina Simone, num espectáculo feito de cumplicidade entre as actrizes oriundas do Porto, possivelmente dos momentos mais cómicos do ano. Uma outra possibilidade de fazer comédia.

23. Antígona, de Mónica Garnel
Umas das tragédias basilares da civilização europeia, adaptada em torno de figuras políticas da actualidade, mas com subtileza suficiente para que não seja apenas uma acusação aos poderosos que conhecemos, mas um repensar sobre quem realmente são no seu íntimo.

22. Tio Vanya, de Bruno Bravo
Regresso aos palcos de um lúcido Luís Miguel Cintra, a encenação virtuosa de Bruno Bravo  que varreu globos de ouro em 2019 (melhor espectáculo e melhor actor para Paulo Pinto) do texto do russo Anton Tchekhov debruça-se de novo sobre a impotência perante a inevitabilidade de nada se fazer. Uma bola de neve, portanto.

21. Todas as Coisas Maravilhosas, de Ivo Canelas
Um sucesso entre o público, um espectáculo completamente suportado pelo acto de empatia do essencial Ivo Canelas com a (sim) humanidade. Sobre deslumbramento com o que está em redor.

20. Unspoken, de Matilde Jalles & Mauro Hermínio
Encenação dos nervos invisíveis do texto de David Harrower e do corpo dos intérpretes, a história de um casal que se vai mostrando um ao outro, com acompanhamento musical ultra sensível de Ricardo Pinto na guitarra.

19. A Família, de Ana Sampaio e Maia, Joana Cotrim & Rita Morais
Uma narrativa de Agnes Jaoui, aqui imersiva – a história passava-se num café, e as criadoras fazem com que o espectáculo se passe também aí, estando o espectador a observar quase que pelo buraco da fechadura o acto de revelação dos podres internos dos membros de esta família, que podia ser qualquer família de novos-ricos, na verdade.

18. Severa, de Filipe La Féria
Homenagem calorosa a uma das figuras basilares do fado português, Severa, a prostituta cantora trágica, cumpria o brilho dos musicais de La Féria num cenário mais simplificado que o costume (e melhor, por deixar espaço aos intérpretes) e com um elenco completamente entregue ao serviço da narrativa proposta.

17. Limbo, de Sara Carinhas
Espectáculo babilónico construído na fuga aos males do mundo e no confronto com a guerra interior que ocorre nos puros de espírito, impregnado da coragem habitual das criações de Sara Carinhas, actriz e encenadora do Porto.

16. Mon€y, de Mala Voadora
A gravação de dois episódios de sitcom é o ponto de partida para se pensar no dinheiro (algo pouco habitual nessas mesmas sitcoms), na não linearidade das questões (muito através de um filósofo incompreendido pelos seus amigos. A partir do texto de Deborah Pearson e com encenação de Jorge Andrade, Mon€y brinca sobre o capitalismo, sobre as sitcoms e a sua “facilidade” num espectáculo com toques de absurdo que não se levou demasiado a sério – e ainda bem. Um dos espectáculos mais satisfatoriamente disruptivos do ano.

15. A Emancipação do Ser sem Braços, de Ana Lopes & Laura Morais Silva
Um desnortear espacial do público no amplo espaço das Caves do Liceu Camões, o novo espectáculo da dupla era um acto poético de proposta anarca e convite aos impulsos primários, tudo em honra da inocência da infância. A revolta pela (re)libertação.

A Emancipação do Ser sem Braços, de Ana Lopes & Laura Morais Silva / DR

14. Um Passo Atrás, de auéééu
Manifesto sobre a recusa ao trabalho e todas as hierarquias de amansamento do pensamento punk (o libertar das amarras dos patrões), o novo espectáculo era mais tribal que Ramones no seu grito, uma luta do indivíduo contra a sociedade, espécie de Arthur Miller em manta de retalhos 2.0. E no Portugal do século XXI.

Um Passo Atrás, de auéééu / Fotografia de Vitorino Coragem

13. Passevite, de Plataforma 285
A companhia de Cecília Henriques e Raimundo Cosme une-se ao portentoso Vaiapraia para criar um não-lugar sem arcos emocionais ou artifícios histéricos, para que se o habite calmamente, ou pelo menos em paz. Mas com a consciência de que esse lugar é a derradeira utopia.

Passevite, de Plataforma 285 / DR

12. A Morte de Danton, de Nuno Cardoso
O texto de Georg Buchner sobre o caos da Revolução Francesa inspira o encenador do Porto a fazer perguntas incómodas ao público acerca dos males do presente, com Albano Jerónimo a liderar o elenco.

A Morte de Danton, de Nuno Cardoso / Fotografia de João Tuna

11. A Boda, de Ricardo Aibeo
Actores habitué do extinto Teatro da Cornucópia reunidos no CCB para trazer a cena o texto de Berthold Brecht, um jantar de peripécias e revelações, com elenco em estado de graça, especialmente Rita Loureiro, quase Liv Ullman cómica.

A Boda, de Ricardo Aibeo / Fotografia de Bruno Simão

10. Os Passos em Volta, de João Garcia Miguel
A partir da obra poética de Herberto Hélder, João Garcia Miguel atirou-se à dificuldade de fazer da poesia literária poesia de cena. Sobre a procura da transcendência pelo trabalho com o corpo (continuamente explorado no trabalho do Teatro Ibérico) e sobre uma ideia de Europa em extinção, o espectáculo trazia ainda de volta a cena um muito divertido João Lagarto, um dos actores mais relevantes do país.

Os Passos em Volta, de João Garcia Miguel / Fotografia de Mário Campos Rainha

9. Karōshi, de Teatro da Cidade
Criação do Teatro da Cidade, “karōshi” é uma palavra japonesa que significa “morte por excesso de trabalho”. Nesta peça todo o ambiente é feito para proporcionar de forma a que o “trabalhador” – interpretado por Guilherme Gomes – não tenha que se preocupar com nada a não ser com as suas tarefas laborais, levando o seu corpo e mente à exaustão. Uma reflexão sobre os dias de hoje, o trabalhador-escravo e os objectivos a cumprir num espaço de trabalho cuja função não é criar bem-estar mas sim simular tudo o que o trabalhador necessita para não ter de sair.

Karōshi, de Teatro da Cidade / Fotografia de Filipe Ferreira

8. Lulu, de Carlos Avilez
De cinematográfico a grotesco, de perverso a sublime, sempre sangrento, a Lulu de Frank Wedekind, na versão de Carlos Avilez uma Lolita fatale, era um rodopiar de males nascidos da abertura da Caixa de Pandora, suportado pela luz reveladora de Rui Monteiro e por um elenco estelar. Reflexões sobre o poder que o erótico exerce, sobre a inevitável batalha entre pais e filhos que leva à sucessão das gerações, sobre mentira e desilusão, tudo isto na mais recente glória de uma das companhias mais antigas de Teatro português.

Lulu, de Carlos Avilez / Fotografia de Ricardo Rodrigues

7. Parlamento Elefante, de Eduardo Molina, João Pedro Leal e Marco Mendonça
Uma conferência das Nações Unidas improvável, reflexão sobre o século político e pop passado, com influência na e da biografia dos três jovens interpretes e criadores. O espectáculo que ia de Che Guevara a Quentin Tarantino nasceu por ter vencido a Bolsa Amélia Rey Colaço do Teatro Nacional D. Maria II, e é a prova de que esta é uma iniciativa a continuar.

Parlamento Elefante, de Eduardo Molina, João Pedro Leal e Marco Mendonça / DR

6. A Mulher que Viveu Apenas uma Vez, de Margarida Correia
A jovem criadora faz da ideia de um funeral total a Joan Crawford (sem possibilidade de renascer enquanto fénix) nascer um espectáculo sombrio e nervoso e (já se pode dizer) Lynchiano, atacando no centro dos cérebros dos espectadores com uma enchurrada de frases lógicas e gritos de terror e silêncios para as acções. Trevas suportadas por uma interpretação superlativa de Bárbara Bruno.

A Mulher que Viveu Apenas uma Vez, de Margarida Correia / DR

5. Triste in English from Spanish, de Sónia Baptista
Criando, talvez sem querer, um novo nome de movimento artistico (Psico-Poética de Browser, assente em fragmentos e imagens que se puxam uns aos outros), Sónia Baptista e as suas co-interpretes desenham uma anatomia da Tristeza, reflexão sobre esse mal amado estado de espírito, que gurus do self-love e capitalistas de toda a espécie tentam erradicar (sem sucesso) da sociedade, uma espécie de abraçar o polvo da melancolia e o urso do espírito crítico (literalmente) ao invés de lutar com eles, uma nova maneira de estar, senão nova, pelo menos rara. E impopular, deixando-nos a derradeira pergunta da idade adulta “preferes ser uma pessoa feliz ou uma pessoa interessante?”

Triste in English from Spanish, de Sónia Baptista / Fotografia de Joana Dilão

 

4. Fuck me gently, de Ana Valente & Mário Coelho
Espectáculo distópico por partir duma ideia de sobreviventes ao fim do Teatro, utópico no sentido das suas personagens serem resistentes a essa eventualidade, realista no retrato de diferentes caracteres da área e situações típicas do acto de criação, místico na sua abordagem ritual ao processo, Fuck me gently foi um show de performances geniais de um elenco ainda jovem, eficaz na chegada ao êxtase, corajoso na proposta e nas soluções, e um dos mais estimulantes momentos artísticos de 2019.

Fuck me gently, de Ana Valente & Mário Coelho / DR

 

3. O Barão, de Miguel Maia
O filme de Edgar Pêra com interpretação soberba de Nuno Melo no início da década parecia já ter fechado quaisquer possibilidades acerca deste conto de Branquinho da Fonseca, mas a ele, Miguel Maia juntou excertos das experiências com mescalina de Aldous Huxley em As Portas da Percepção, histórias de amor dos actores Inês Garrido, Isac Graça, Rita Marques e Telmo Mendes e canções de Gnarls Barkley e Jeff Buckley para criar uma narrativa back and forth que acabou por resultar num espectáculo duplo: dum lado a história do Barão solitário e violento e do Inspector com consciência de excesso de zelo, do outro lado, uma enciclopédia das dificuldades no processo de criação teatral, da luta de egos à discussão conceptual, do envolvimento postiço à responsabilização séria do corpo do actor.

O Barão, de Miguel Maia / Fotografia de Sónia Godinho

2. Timão de Atenas, de Teatro Praga
Colaboração da referida companhia com a Ludovice Ensemble, o espectáculo com base na peça de William Shakespeare e na ópera de Purcell encerra a trilogia CCB que acompanhou toda a década (começando com Sonho de Uma Noite de Verão, seguindo-se A Tempestade). Espectáculo em duas partes, uma primeira que paródia de jogatanas de poder nas cortes (ou seus equivalentes actuais), na segunda o retrato de Timão enquanto individualidade independente de preconceitos materiais e éticos, embora criando a sua própria tabuada material e ética, ou seja, relacional, culminando na morte em cena mais gloriosa do ano, na figura deste Timão complexo e musculado por André E. Teodósio. Nothing brings all things. Ou algo assim.

Timão de Atenas, de Teatro Praga / Fotografia de Carlos Pinto

 

1. Mise en Abyme, de Cão Solteiro & Vasco Araújo
Com base numa das peças que integrou a exposição de 2018 Morte del Desidério de Vasco Araújo, um texto-argumento-cinematográfico de José Vieira Mendes, o Cão Solteiro cria um cocktail entre Teatro, Cinema e Artes Plásticas, não só libertador na forma, por criar uma mistura das artes tão fluída e tão pouco datada (pecado comum nas tentativas de mistura de artes no Teatro português), mas no conteúdo, concebendo uma versão de desejo que não se prenda somente com a perseguição de algo para a sua concretização no futuro, mas com disponibilidade para o imprevisto e para uma ideia de construção incompleta. Paradoxalmente, criaram um dos espectáculos mais completos não só do ano, mas da década.

Mise en Abyme, de Cão Solteiro & Vasco Araújo / Fotografia de Joana Dilão

Texto de Luís Miguel Davies e João Estróia Vieira

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