30 anos de “Manufacturing Consent”, de Noam Chomsky e Edward S. Herman

por Diogo Senra Rodeiro,    31 Dezembro, 2018
30 anos de “Manufacturing Consent”, de Noam Chomsky e Edward S. Herman
Capa original do livro
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No ano em que o maior intelectual vivo dos Estados Unidos da América (EUA) — Noam Chomsky — celebra 90 anos, esta é igualmente a ocasião de celebrar os 30 anos do lançamento de um dos um dos seus livros mais acutilantes. Neste caso trata-se de Manufacturing Consent – The Political Economy of the Mass Media, uma parceria com Edward Herman com quem colaborou não poucas vezes durante a carreira, tendo conjuntamente desenvolvido o modelo de Propagandabaseado num estudo das instituições políticas, económicas (nomeadamente as os grandes conglomerados comerciais — empresas multinacionais) e as instituições que comandam os média, numa sinergia entre elas que até ao momento deste livro, tinha sido apenas aflorada.

As origens para o nome desta polémica obra remontam até ao sobrinho de Freud, Edward Bernays, que foi diretor do primeiro instituto de relações públicas nos EUA e que inclusivamente lançou um artigo seguido dum livro de seu nome “The Engineering of Consent” (em português engenharia do consentimento): a forma como se consegue influenciar as “massas ignorantes e irracionais”, fazendo assim uso da forma mais distorcida possível dos estudos do seu tio sobre a irracionalidade da espécie humana. Tudo porque como o seu contemporâneo Walter Lippmann teorizou que o “rebanho desorientado” ou “agressivo” (na versão original bewildered herd) era incapaz de se auto-regular e de fazer com que a Democracia americana fosse atingida na sua plenitude. As consequências das erráticas profecias quer de um, quer do outro, desembocaram na quinta-feira negra de Wall Street, marcando assim o primeiro “crash” económico da modernidade, em 1929; o rebanho havia sido “impelido” a entrar na bolsa via qualquer tipo de ações, tendo o mesmo fenómeno levado à euforia não-correspondente ao real estado da economia americana, facto que desregulou a bolsa – consequentemente o Mundo quase por inteiro. (cf. “The Century of the Self” por Adam Curtis)

Porém, foi mesmo uma expressão utilizada pelo influente Lippmann que levou à adoção do título do livro pelos autores, uma vez que nos seus trabalhos figurava sobremaneira a expressão “The Manufacture of Consent” sob a qual discorria numa visão não-democrática da imprensa e dos média em geral. Visão esta que contrastava com a de John Dewey, que para os crentes de uma verdadeira democracia baseada na educação dos ignorantes e para aqueles que se recusam a chamar os ignorantes de “rebanho”, foi um dos maiores filósofos americanos da primeira metade do século transacto.

Curioso será o facto de no ano em que este livro saiu 50 eram as corporações que dominavam os média americanos. Todas elas utilizando um modelo institucional igual ou bastante semelhante ao utilizado nas áreas do direito e outras áreas comerciais — ou seja, estrutura hierárquica na qual os shareholders não sabem quem são os seus trabalhadores, pouco lhes interessa, como também vice-versa, numa opacidade essencial para que estes trabalhadores queiram (ou pelo menos não rejeitem) trabalhar para estas empresas; hoje em dia são só já 6 empresas que dominam o mercado. Uma convergência que é tão visível nesta como em outras áreas da economia mundial.

Andrew Marr (BBC) – “How can you know that I’m self-censoring?”

Noam Chomsky – “I’m not saying you’re self-censoring. I’m sure you believe everything you’re saying. But what I’m saying is that if you believed something different, you wouldn’t be sitting where you’re sitting.” (Entrevista de Noam Chomsky à BBC por Andrew Marr

Mas como funcionam na prática estas empresas? São elas veiculadoras de eventos, verdades, ou mentiras? Para Lippmann como para Reinhold Niebuhr (ao bom estilo americano, um teólogo e pastor protestante que decidiu incluir nas suas reflexões temáticas como política, sociedade, liberdade, etc., sendo mais um paladino da mentira e da não-democracia), autor do termo “necessary illusions“, título análogo ao do livro de Chomsky datado de 1989, isto é o necessário:

“The naive faith of stupid masses requires ‘necessary illusions’ and ‘emotionally potent oversimplifications’ provided by the myth-creators to keep the ordinary person on course.” (Manufacturing Consent – The Political Economy of the Mass Media)

A estrutura desenhada por estas empresas, em colaboração com o poder politico-económico, vindo daqui a inovação dos autores por terem analisado em simbiose o que cada setor contribui para a “doutrinação” mais eficaz do público divide-se em: 20% da sociedade, dos quais figuram pessoas relativamente educadas, que tem um papel de decisão e que são parte integrante do poder politico-económico; e 80% do restante, o rebanho portanto, que estão incumbidos de seguir ordens e de não pensar acerca de nada (para além do seu trabalho/ofício).

“The point is you have to work. That’s why the propaganda system is so successful. Very few people will have the time, the energy or the commitment to carry out the constant battle that’s required to get outside.” (Manufacturing Consent – The Political Economy of the Mass Media)

Contudo, existem 5 filtros que são os que definem a razão pela qual a máquina continua em tão saudável funcionamento pese embora crie tão nocivos efeitos (sem que “ninguém” note):

  • Estrutura: estas empresas de média são possuídas por grandes corporações cujo objetivo final é a maximização de lucros a todo o custo; logo, não são fomentadas pelo desejo de instigar o jornalismo crítico de forma a que se converta num milieu de educação para o grande público daquilo que é o pensamento crítico;
  • Publicidade: a televisão e os jornais são bens quase gratuitos; refraseando — o grande público não paga imenso por estes serviços. Quem é que então financia os aumentos tecnológicos ou as inovações de que o setor beneficia? As empresas que querem que os consumidores paguem pelos seus produtos. Desta forma, a publicidade paga pelas audiências que a televisão necessita, num movimento em que as empresas publicitárias adquirem igualmente o público com ajuda das empresas de média, “viciando-o” nos seus produtos (uma fase pré redes-sociais nas quais as nossas preferências não são vendidas direta como hoje em dia o são, mas indiretamente — a era dos mass media ainda não seria a era do big data);
  • Cumplicidade: em nome de quem irá ser feita a representação senão de quem tem dinheiro e/ou poder? A máquina é bem oleada por este “media game” como os autores lhe chamam;
  • Estórias inconvenientes: quando alguma surge, as fontes são sempre desacreditadas. É uma forma de censura implícita, na qual o desejo de verdade é absolutamente ignorado vis-à-vis o bem-estar dos implicados na estória — pobre Nixon e pobre Clinton, e talvez também George H. W. Bush que só durou um mandato com conquistas sociais que só no mandato de Johnson foram ultrapassadas, tendo havido certamente alguém que gostou pouco do que fizeram; e louvado Gaddafi, que os media americanos tanto encimaram, para justificar outros fins! (cf. “Hypernormalisation” por Adam Curtis)
  • Inimigo Comum: este último ponto toca no que referi sobre Gaddafi, que também tinha como inimigo o presidente Assad da Síria e que o inglês Adam Curtis tão bem demonstra no seu documentário como o primeiro foi usado pelos decision-makers americanos para fins que só os beneficiavam a eles; o brainwashing, sobretudo nos EUA onde grandes percentagens da população acredita em OVNI’s, que anjos habitam e caminham a Terra, e que o 9/11 foi encetado pela Al-Qaeda enquanto que o estado iraquiano nada tinha que ver com o ataque, fazem com que a ação dos média seja muito mais fácil (ou dos que a comandam!). Enquanto existir Comunismo e Terrorismo e outros ismos inventados pela criatividade intrínseca da imprensa, a verdade jornalística — ou seja, a mentira real — prevalecerá e mais atrocidades continuarão no mundo, como a do Iémen nos nossos dias, que não são reportadas em lado nenhum.

The 5 Filters of the Mass Media Machine – Al Jazeera English

É assim que funciona um modelo de propaganda. É este “véu da ignorância” que é lançado sobre nós e com o qual vivemos no dia a dia sempre pensando que aquilo que lemos no Público ou Expresso (não comento nada sobre o Observador) reflete em algum nível o que outrora se chamou de “verdade”. A verdade, a sê-la, quiçá seja esta:

 “A propaganda model… traces the routes by which money and power are able to filter out the news fit to print, marginalize dissent, and allow the government and dominant private interests to get their messages across the public.”  (Manufacturing Consent – The Political Economy of the Mass Media)

Haverá ainda relevância que nos leve ao reencontro do que foi escrito pelos autores sobre o papel dos média? Ou o foco deverá voltar-se agora para os grandes gigantes tecnológicos que nos controlam como se num panopticon digital vivêssemos? (sobre este ponto refletirei em breve). O desígnio de ambos é o de nos isolar. Dos outros e de nós mesmos, não de tentar corrigir mas aumentar o nosso desnorte. Como Chomsky diz no documentário de 1992 que nasceu do livro — “the beauty of their system is to isolate everybody”. Ou talvez devamos fazer como o aniversariante Noam que no começo de cada dia consulta as páginas do “inimigo” — New York Times — como o faz todos os dias que acorda, num exercício infatigável de se manter a par com o que o “mais reputado jornal do mundo” conta sobre o mesmo mas desconfio também para escrutinar se, com o passar dos anos, o panfleto tem aumentado o tamanho do seu nariz ou não.

Que sorte têm sempre os apóstolos da mentira (como Bernays, Lippmann e Niebuhr) por nunca presenciarem aquilo que advogam, seja por circunstância do seu próprio privilégio em vida ou por ser demasiado longe no tempo que os efeitos nefastos são sentidos. E vão-se eles desta vida pensando que venceram por serem mais inteligentes que os outros sem nunca tentarem equivaler o nível de inteligência do resto da população para que aí sim, houvesse um debate de ideias justo.

Talvez Adorno estivesse certo ao crer que Walt Disney foi o homem mais cruel do século XX por ter criado o enclausurante momento de lazer e por ter retirado as famílias dos parques, onde a vida é real, e tudo está certo (ou como Mia Couto disse em Viseu há pouco tempo “A rua já não pertence à infância”). Ou mais certo estará Bauman quando nos fala da interdependência global gerada pelas redes de comunicações estabelecidas pelo mundo inteiro, que nos distrai e nos traz uma facilidade demasiado grande a desconectar da vida real. Só mesmo a política do silêncio de Deleuze ou a política da solidariedade de Berardi nos salve, mas a hora já se faz tarde e afinal o que importa é que existam a Fox News e o Correio da Manhã.

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