‘1986’ é um retrato da nostalgia dos anos 80 em Portugal

por Marta Vicente,    13 Maio, 2018
‘1986’ é um retrato da nostalgia dos anos 80 em Portugal
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Ainda que possa ser difícil generalizar, há uma característica, para mim fundamental, das novas produções portuguesas que permite, para quem tem interesse pelas mesmas, criar uma relação direta entre o filme ou série e o espectador. Falo da simplicidade, naturalidade se preferirem, que transparece nos movimentos das personagens, nos diálogos que travam umas com as outras, no encadeamento da narrativa; uma simplicidade que é, mais ou menos, como transportar uma câmara no ombro e dizer ao espectador “podias ser tu mesmo aqui, a viver esta vida que filmo“, e o próprio consegue imaginar-se a subir aquela rua de Lisboa, numa cena que pode durar vinte minutos e que leva muitos a considerarem o cinema português monótono. Ora, é exatamente esta naturalidade que Markl veio dar continuidade, em 1986, e são exatamente estas cenas monótonas que, por vezes, transportam um sentimento pesado, que consegue evitar. O que não conseguiu evitar foi a nostalgia da década de 80, facto que lhe permitiu que os portugueses corressem efusivamente para a RTP (Play) e para o sofá nos serões de terça-feira.

1986 é uma série construída sob vidas banais, advindo a sua peculiaridade e beleza da forma como essas mesmas vidas banais se entrelaçam, da caraterização concebida por Markl às personagens e do inteligente uso que faz do marco temporal escolhido para referenciar a cultura. Neste sentido, apresenta-nos uma sociedade estereotipada: Tiago, o rapaz que não é popular e que sofre de bullying, vive uma paixão intensa pela rapariga bonita e popular, Marta; Patrícia, a rapariga gótica, segue o caminho das trevas e apaixona-se por Sérgio, o típico fã de metal a quem não falha o cabelo até aos ombros e a t-shirt dos Iron Maiden; por fim, Gonçalo, o beto apaixonado por Marta, que não hesita no bullying a Tiago e aos seus amigos.

É, exatamente, após ter construído este tão conhecido círculo de tendências sociais que Markl encontra espaço para destruir a sociedade estereotipada que acabara de criar. Para esse fim, socorre-se daquela que me parece ser uma arma eficaz contra a estupidez humana: o humor sob a forma de ironia – lembremo-nos, a este propósito, de Marta a perguntar a Gonçalo se ele, ao entrar na escola, tinha assinado algum tipo de contrato a dizer que o tipo forte devia bater no tipo intelectual e sensível. Sendo este ramo a “praia” de Markl, não é de esperar que o seu objetivo tenha sido atingido e que consiga, de facto, provocar no espectador vontade de rir.

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E porque todas as séries têm, seja qual for a forma que assumam, um evento central que funciona como alavanca a todos os outros, 1986 não é exceção. Aqui, sentimentos e estados de espírito são moldados pelo decorrer da disputa da segunda volta das presidenciais, no confronto entre Mário Soares e Freitas do Amaral. Neste sentido, além de uma sociedade estereotipada, temos uma sociedade bipolarizada politicamente entre esquerda e direita, onde até os comunistas, já derrotados, se vêm obrigados a votar no sacana do bochechas para evitar a vitória de uma direita que não toleravam. Eduardo, pai de Tiago, e Fernando, pai de Marta traduzem esta divisão; sendo personagens impulsivas, cujo temperamento é determinado pela vida política, os seus papéis podem, facilmente, ser considerados exagerados e despropositados, mas não nos esqueçamos da arma humorística adotada pelo argumentista.

Considerando o cenário e as personagens já descritas, a escolha do tema política como mote da série revela-se atípica e até arriscada para um Portugal que, atualmente, teima em esquecer os valores democráticos que tão recentemente conquistou. Facilmente se superou este risco e se alastrou, pelo país, uma vontade de reviver memórias da época onde a ânsia de viver a liberdade ainda corria pelas veias dos portugueses; liberdade esta que Markl, na série, tanto retrata através das disputas ideológicas e políticas intensas como das canções do Sérgio Godinho.

As referências são inúmeras e, através delas, pode reconstruir-se a década de 80 com base nas suas principais caraterísticas. Desde as saias plissadas à moda dos blusões de ganga e das calças de bombazine, à alusão aos filmes de Andrey Tarkovsky e de Woody Allen, passando pelas canções dos The Smiths e por sítios emblemáticos da noite de Lisboa, como o Frágil, parece-nos que aquilo que mais marcou as gerações não escapou à série. Numa das melhores cenas, discute-se, ainda, as marcas das pastilhas elásticas. Acima de tudo, retrata-se uma sociedade que, no lugar do desejo por telemóveis e computadores, tinha a vontade de acumular cassetes de filmes e vinis; esta é uma sociedade onde as pessoas se reuniam para ouvir o novo álbum ou a nova produção de um artista, caraterística que concedia ao cinema ou à música uma valorização que a geração do Spotify e do Youtube dificilmente poderá sentir.

Claro que todo este imaginário de Markl ganhou vida, apenas, quando, a seu lado, se juntou o realizador Henrique Oliveira, passados anos da ideia ter estado arrumada na gaveta. A contribuir para o seu bom desempenho, estão todos os atores, como Miguel Moura e Silva no papel de Tiago, Laura Dutra como Marta, Miguel Partidário a representar Sérgio, Eva Fisahn como Patrícia e muitos outros sobre os quais os papéis assentam, igualmente, de forma fantástica.

Termino destacando o trabalho que artistas portugueses, como Lena D’Agua, João Só, David Fonseca, entre outros, realizaram ao nível da banda sonora. Na música que inicia o álbum e que, igualmente, abre os episódios podemos ouvir “estamos aqui, neste fim do mundo, dizem que é na Europa unida. Estamos aqui, presos por um fio, mas ninguém nos desliga da ficha“. Estas simples frases representam aquilo que é esta série: um reviver de memórias de gerações que tinham vontade de viver intensamente a vida política do país e a liberdade, que ansiavam absorver tudo o que conseguiam da realidade cultural, num país atrasado tecnologicamente e com uma elevada taxa de analfabetismo, onde a esperança de prosperidade e de progresso socieconómico era alimentada com a entrada na Comunidade Económica Europeia. 1986 é, assim, um retrato daquilo que foi uma época peculiar e que é, em 2018, trinta e dois anos depois, uma época desejada por aqueles que a viverem, sonhada pela geração que a seguiu.

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