Yevgeny Zamyatin, o russo que inspirou a obra literária de George Orwell

por Lucas Brandão,    5 Setembro, 2016
Yevgeny Zamyatin, o russo que inspirou a obra literária de George Orwell
Yevgeny Zamyatin / DR
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Como nomes inconfundíveis do estilo literário distópico, aponta-se George Orwell e Aldous Huxley, assim como Ayn Rand ou Philip K. Dick. A estes, junta-se um que deu o mote para a produção literária de Orwell. De origem russa, Yevgeny Zamyatin notabilizou-se como uma das múltiplas figuras de proa dos finais do século XIX e inícios do século seguinte. Foi a partir do romance “Nós” (1924), redigido já em tempos soviéticos que se começou a talhar um caminho distinto mas ao alcance dos mais problematizadores. Pesadelos ficionados mas estreitos em relação à realidade, esta que se via numa questão eterna e premente quanto aos contornos da verdadeira felicidade.

Yevgeny Ivanovich Zamyatin nasceu a 1 de fevereiro de 1884 em Lebedyan, no oeste da Rússia, filho de um sacerdote ortodoxo russo e de uma música. Como formação, moveu-se de malas e bagagens para São Petersburgo, cidade na qual estudou durante seis anos (1902-1908) engenharia naval. Foi desde cedo também que adotou uma postura política ativa, afiliando-se aos bolcheviques em época de contendas diante do exército czarista. Como consequência dessa associação, viu-se preso e exilado durante a revolução de 1905. No entanto, e tentando regressar à cidade de forma clandestina, viu-se compelido a emigrar para a Finlândia, onde concluiu a sua instrução.

Já como engenheiro naval, Zamyatin foi desenvolvendo algumas peripécias escritas de ficção, aproveitando a conjuntura do seu país e o seu eventual regresso como engenheiro a este para articular a sua obra. Porém, voltou a ser detido e expatriado em 1911, voltando somente por via de uma amnistia concedida em 1913. Três anos depois, voltou a expandir horizontes, desta feita em Inglaterra. A sua incumbência dizia respeito à supervisão da construção de quebra-gelos nos estaleiros de Newcastle. Desta experiência, proveio um dos estilos literários trabalhados pelo autor, sendo este não a distopia mas sim a sátira política. A obra foi “The Islanders” (1918) e não poupa críticas ao modo de ser e de estar inglês. Antes, já havia escrito outra sátira (“Coisas de Província”, de 1913), em que criticava como se vivia numa pequena cidade do seu país.

Quanto às posições políticas, essas manter-se-iam incólumes e voltaram a colocá-lo sob brasas após nova obra (“Na Kulichkakh”, de 1914), na qual descrevia desagradavelmente o exército czarista. A sua ideologia seria preservada e consolidada com a participação em periódicos socialistas. Porém, esta seria paulatinamente dissociada dos bolcheviques, motivada essencialmente pela censura imposta no pós-Revolução de Outubro, esta apoiada pelo escritor e engenheiro. Não obstante continuar a editar revistas, a dar palestras e até a editar traduções russas de trabalhos de autores internacionais conceituados, Zamyatin viu a sua originalidade suprimida por uma censura cada vez mais austera.

Esta austeridade convergiu com a oposição crescente ao bolchevismo por parte do autor. O pináculo de toda esta controvérsia foi a proibição de publicação de trabalhos da sua autoria, tudo isto após vir a público a sua distopia “Nós” (1927/28) num jornal de emigrados russos. De forma a culminar esta crescente tensão, e com o auxílio do também escritor Maximo Gorki, Estaline autorizou a sua saída do país. Na companhia da sua esposa, conheceu uma morte inglória ao partir num estado de pobreza na capital francesa de Paris em 1937. No entanto, importa recordar a preponderância e todos os meandros da sua magnum opus, a tal que vinha bem escondida num periódico cujo nome caiu no desconhecimento.

“True literature can exist only where it is created, not by diligent and trustworthy functionaries, but by madmen, hermits, heretics, dreamers, rebels, and skeptics.”

Yevgeny Zamyatin sobre a literatura

Apesar de publicado nesse jornal, o livro já vinha circulando desde 1924 em Nova Iorque e estava escrito já desde o início da década. Perante a censura soviética, só quatro anos é que viria ao público do Leste, alcançando a legalidade no longínquo ano de 1988, alturas de uma ocidentalização política. A descrição de um regime aparentemente perfeito mas opressor e a denúncia das suas imperfeições no contacto com um grupo ativamente oposto incomodaram visivelmente a recém-chegada União Soviética. A esse regime, o autor, que narra as vivências de um cientista nesse contexto político, chamou de “Benfeitor”. Grande parte da obra baseou-se nas experiências pessoais de Zamyatin nas revoluções russas de 1905 e 1917, para além do período passado em Newcastle a construir navios.

Desta forma, “Nós” surge como uma fusão das sátiras que havia desenvolvido antes com elementos futuristas e distópicos que se convergiram numa visão única e personalizada. A obra conduz para os extremos do totalitarismo e para a mecanização da sociedade industrial moderna. Na pele do Estado, transmite a ideia de que este crê no livre-arbítrio como fundamento da infelicidade, devendo proceder-se a um controlo escrutinado e matemático da vida dos cidadãos. Os sistemas de precisão empregues diziam respeito àqueles criados por Frederick Winslow Taylor, um dos primeiros teóricos da gestão como corpo de estudo e de atuação e que deu origem ao Taylorismo.

Como auxiliar a esta contextualização, o russo edificou um estilo arquitetónico de habitações muito próprio, no qual todas as casas eram feitas a partir de materiais transparentes. Este detalhe providenciou a posição de constante vigilância veiculada pela figura estatal da obra. Pormenores como este, que se arrastariam implicitamente por todo o livro, deixavam o socialismo russo em brasas e promoviam a eventual censura. Para que todo este corpo literário nascesse, revelou-se fulcral a influência do inglês Jerome K. Jerome e do seu conto-ensaio “A Nova Utopia” (1891). Neste, a ação passa-se num espaço urbanizado mas englobado por um registo em que os cidadãos são indistintos no que vestem e no que aparentam.

A distinção surge a partir da numeração atribuída a cada um deles nas suas uniformes túnicas, em que as mulheres ficavam com os números pares e os homens com os ímpares. Essa igualdade é levada a extremos insólitos, como cirurgias de redução de membros físicos a indivíduos com o físico bem desenvolvido. Esta visualização acaba por ser subtilmente mencionada pelo russo na sua obra. Contudo, e num plano ainda mais distópico, também as imaginações são intervencionadas e reduzidas, especialmente as que se revelam mais ativas que o considerado normal. O autor do leste também evidencia esta operação como parte central do seu trabalho e como método de repressão por parte do regime supremo em relação aos subversivos. Como corolário e até ponto de maior convergência de ambos, apresenta-se o amor familiar como algo que humaniza as personagens e o contexto, opondo-se à corrente opressiva e tirana pela qual tudo se rege.

“You’re in a bad way! Apparently, you have developed a soul.”

Yevgeny Zamyatin na obra “Nós” (1924)

Quanto às influências desencadeadas pelo trabalho de Zamyatin, surge à cabeça o também britânico George Orwell e “1984” (1949). Este escritor iniciou a produção do seu trabalho distópico após ler uma tradução francesa de “Nós”, considerando-a como o modelo a partir de uma resenha que fez da mesma. No entanto, e apesar de um substancial decalque das condições distópicas, o inglês torna-se mais temático e sombrio, largando a ponta satírica e humorística caraterística de Zamyatin. Para além disso, torna-se também mais inovador no que toca à criação de um registo vernacular específico e quanto às tonalidades assumidas por uma sociedade que se extrapola de qualquer ética. Esta singularidade viria a tornar-se adjetivo e a assumir-se como “orwelliano”. A influência expressa-se também na perpendicularidade que sugere existir entre “Admirável Mundo Novo” (1932), do também autor distópico Aldous Huxley, com o trabalho do engenheiro russo.

Numa fase em que foram muitas as convulsões sociais, grande parte motivadas por uma massa crítica e consciente da realidade em que vivia, a literatura não abandonou o seu encalço e representou-a de múltiplas formas. Indo ao mais particular caso até ao mais açambarcador regime, passando desde o amor conjugal ou familiar até ao amor pelas causas e pelos ideais, a escrita nunca se deixou prender perante tamanha atividade e sentido de oportunidade. Enquanto uns representavam a realidade tal como ela era, outros entregavam-se a visões que extrapolavam os limites previamente conhecidos da mesma. Pelo meio, um retrato ainda mais coerente com a verdade das coisas.

Foi assim que se revelou a distopia de Yevgeny Zamyatin, experienciador de conflitos políticos e de viagens conturbadas. Com uma bagagem empírica apoiada numa abordagem política exercitada, deixou que a imaginação se juntasse a esta celebração da essência da literatura e compôs uma inaudita realidade. Foi com estas premissas que engenhou o percurso de vários autores que o viriam a suceder nestas passagens mais ousadas. Sem descartar a devida dose de sátira que é exigida para a contestação política, o russo criou um novo mundo no qual fragmentos da realidade soviética não passavam despercebidos. É assim que se evidencia o engenheiro da distopia, o mesmo que se esforçou pelo final de uma tão comum miopia.

“A man is like a novel: until the very last page you don’t know how it will end. Otherwise it wouldn’t even be worth reading.”

Yevgeny Zamyatin sobre o homem.

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