‘Sopro’, de Tiago Rodrigues: o que foi dito e o que ficou por dizer

por Tiago Mendes,    14 Novembro, 2017
‘Sopro’, de Tiago Rodrigues: o que foi dito e o que ficou por dizer
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Mais que um conselho, é um pedido: vão ver o mais recente espectáculo do encenador e director artístico do Teatro Nacional D. Maria II, Tiago Rodrigues. Esta é a última semana em que a produção estará em cena no palco da Sala Garret, antes de partir em digressão pelo país e pelo mundo ao longo dos próximos dois anos. Sopro afirma-se como um momento marcante e emotivo na temporada do TNDM II.

A premissa é o quanto nos basta para captar a atenção e aguçar a curiosidade: Cristina Vidal, ponto há quase 40 anos, sobe ao palco. À vista de todos, continua a não ser mais que isso: um ponto, a profissão em vias de extinção que se presta a ajudar os actores a ultrapassarem as suas brancas, no texto e nas marcações. Mas os cinco corpos que com ela pisam o palco estão, desta vez, à sua mercê. Estão lá para contar a sua história. Cristina irá vaguear entre eles, soprando cada uma das frases de maneira praticamente inaudível, fornecendo conteúdos que os actores se encarregam de comunicar, soprar mais alto.

A ideia em si é o que nos atrai para dentro da sala. A ideia e a qualidade da carreira de Tiago Rodrigues enquanto encenador e – desde 2015 – director artístico do TNDM II. Quando Sopro estreou este Verão num dos mais importantes eventos teatrais do mundo – o Festival d’Avignon, em França – as nove sessões esgotaram. Mas, dizíamos: se entramos entusiasmados com a ideia, saímos abalados com o profundo impacto emocional de uma peça que consegue transcender-se.

O espectáculo começa por se apresentar. Num primeiro momento, estamos diante de uma linguagem plástica muito minimal, em que o elenco se assemelha a marionetas animadas pela acção controlada e planeada do ponto – também fisicamente. E o ponto não dirige mais do que aquilo que o texto o encarrega; o guião, seguro nas mãos ao longo de toda a peça, exige que cada uma das linhas deva ser respeitada, pela sua ordem, na recriação um processo decidido e ensaiado à exaustão. É um início quase maquinal, mas em que o meio está à vista. Vemos o texto: vemo-lo na Cristina Vidal que, de forma atenta e profissional, segreda cada uma das falas e uma boa parte das próprias didascálias.

Mas rapidamente somos canalizados para outros momentos, compostos de ritmos diferentes. Peças dentro da peça, tragédias antigas recriadas e enquadradas num determinado propósito; passagens em que rimos alto e com muita vontade; mergulhos na poesia das palavras e dos sentidos, do que fica por dizer. O tempo passa a voar, como um temporal, mas deixa mais que ruínas e que fantasmas no seu lugar.

Somos previligiados por assistirmos ao espectáculo no palco onde este faz mais sentido. Entre as histórias que passamos a conhecer de Cristina Vidal – umas verídicas, outras ficcionadas, ou de autenticidade questionável – destaca-se uma que aconteceu mesmo, há muitas décadas atrás. Foi escondida na caixa do ponto da Sala Garret que Cristina, então menina de 5 anos de idade, assistiu à sua primeira peça de teatro. A casa que mais tarde a acolheria na profissão que aquele episódio de infância lhe profetizara é o cenário e a inspiração das histórias e ficções que dão mote a Sopro. De certa forma, assistimos a uma tentativa artística de historiografia dos últimos trinta anos do D. Maria, num exercício criativo de memória que poderá ter o condão de transformar a própria percepção interna da instituição.

É realmente emocionante a forma como a peça se encaminha para o seu fecho: a primeira metade do espectáculo, que se assume muito auto-referencial e mastigadora do próprio conceito – enquadrada numa narrativa superficial, quase céptica – contrasta com uma segunda metade mais emotiva e dramática, construindo a tensão que levará ao clímax dos avassaladores últimos minutos. O ponto não pode mudar o texto; mas poder soprá-lo é já um contributo enorme. Saímos com perguntas, ideias; saímos efervescentes.

Sopro é uma peça que acaba por se revelar quase romântica, embora nascida de um berço pós-moderno. Combatendo o pretenciosismo algo vazio e oco que, não raro, inspira alguma da produção teatral contemporânea, a mais recente produção do TNDM II parece impregnada de facilidade e honestidade de linguagem, capaz de conquistar até o público que não vá com frequência ao teatro, ou que não acredite nos seus méritos. Por isso, mais que um conselho, trata-se de um pedido: vão ouvir o Sopro, enquanto está por perto para se ouvir. E levem com vocês alguém que já há muito tempo não dê uma oportunidade ao teatro.

Fotografias de Filipe Ferreira / TNDM II; à excepção da última, de Christophe Raynaud de Lage / Festival D’Avignon

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