Rocco e a emancipação da pornografia hardcore

por Gabriel Margarido Pais,    2 Novembro, 2016
Rocco e a emancipação da pornografia hardcore
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Pode ler-se no comigsoon.it que «Rocco Siffredi é para a pornografia o que Mike Tyson é para o pugilismo: uma lenda viva». O homem que sempre teve o desejo como único Deus decidiu também ele pendurar as ‘luvas’ no ano passado, e com essa decisão, Rocco fez talvez o filme mais importante da sua longa e mítica carreira.

O filme Rocco acompanha Rocco Siffredi e alguns dos seus familiares, bem como profissionais da indústria à qual ele dedicou trinta anos da sua vida, na preparação para a sua última cena, o seu último filme de cariz pornográfico. Rocco Siffredi, apesar da sua enorme fama e da opinião unânime do público, que o tem como um ator de referência no ramo, foi muitas vezes criticado e alvo de descontentamentos por causa do tipo de pornografia que pratica. A pornografia hardcore e violenta dos filmes de Siffredi não é para todos os gostos, e existe mesmo quem o acuse de promover, até certo ponto, violência sexual. Este filme não foi feito para contrariar ou contra-argumentar essas vozes, mas na sua ingenuidade e simplicidade, Rocco consegue, mais uma vez até certo ponto, fazê-lo.

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Propondo-se a desmistificar muitos dos tabus que existem em relação à indústria da pornografia, este filme revela-se muito mais do que isso: Rocco é também um filme quente e carinhoso, um filme familiar e um que não pretende cobrir de panos quentes uma indústria que tantas e tantas vezes se encontra entre a espada e a parede. Na verdade, após ver Rocco, percebe-se completamente a quantidade de profissionalismo, de trabalho e dedicação que são postos na gravação de um filme pornográfico, seja ele de Rocco Siffredi ou não. A equipa de Rocco, liderada pelo seu primo, funciona de maneira muito semelhante à de uma telenovela da Endemol: as horas de trabalho são muitas e intensas, a quantidade de horas rentáveis de filme tem de ser altíssima, e todos os aspetos técnicos (como a luz, os movimentos, os cenários e os guarda-roupas) são levados muito a sério. É um trabalho exaustivo que leva pessoas dedicadas ao limite, pois estes são atores e atrizes como quaisquer outros: querem sempre dar o seu melhor e dedicam a sua vida a consegui-lo.

Claro que este filme nem sempre é fácil de ver, nem agradável. Apesar de ter havido um nítido cuidado quanto à quantidade de imageria forte que estaria incluída no filme, Rocco não seria uma pintura digna de Siffredi se ela não existisse de todo. De nenhuma maneira quero dizer que estas imagens magoam a qualidade do filme, se calhar até acontece o contrário. Não é raro os filmes que mexem connosco e os que consideramos referências do cinema terem imagens que nos fazem querer olhar para o lado (nunca é fácil, apesar das inúmeras repetições, ver a famosa cena do passeio em American History X). Este também não seria um retrato fiel da indústria da pornografia caso não causasse no seu público algum tipo de confusão e de sentimentos mistos. Estas imagens servem um propósito e executam-no na perfeição, perfeição essa que é balançada com o facto de não existirem imagens visualmente explícitas de atos de penetração, por exemplo. O filme consegue encontrar o ponto de equilíbrio perfeito entre o sexual, psicológico e agradável. Esta tarefa não há de ter sido nada fácil na sala de montagem, pois com imensa facilidade este filme poder-se-ia ter tornado num filme barato. Ao captar os pontos de vista dos participantes, Rocco consegue mudar a opinião que temos sobre muitas das especificidades do ramo da pornografia, e não só dele como um todo. É de louvar a resposta das mulheres que contracenam com Siffredi nas suas cenas, no que muitos considerariam um ato de submissão que em nada ajuda a imagem feminina a impor-se como poderosa. Estas mulheres (muitas das quais se consideram figuras poderosas no seu dia-a-dia, e feministas) consideram que elas, no fundo, é que são as donas da situação, e que se tudo o que vemos em cena acontece é porque elas assim o permitem e desejam, ponto de vista este que Rocco Siffredi tenta recriar no seu último filme.

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Rocco faz ver ao seu público o que muitos não querem ver: uma profissão na indústria da pornografia é compatível com uma vida familiar saudável. Rocco Siffredi tem dois filhos, e ambos sabem o que o pai faz para ganhar dinheiro. Não só aceitam a sua decisão como também o fazem ver que isso não é um fator negativo no seu crescimento. «Sei o que fazes, e não me interessa. Não sei se és bom no que fazes ou não, mas és e sempre foste o melhor pai que podia desejar, e isso é o que me interessa» diz um dos filhos de Siffredi ao pai. Mesmo a relação entre as pessoas da indústria se revela como uma relação saudável e estritamente profissional. A celebração no final de um dia de rodagens é absolutamente igual à de um dia de rodagens de cinema. A conversa de circunstância é a mesma e as palavras trocadas muito semelhantes. No final de contas, estas são pessoas como quaisquer outras, pessoas que no fim do dia voltam para casa para relaxar como qualquer outro profissional, e que têm vidas iguais a todos nós. Rocco consegue mostrar com carinho e verdade as relações pessoais entre os atores, captando as conversas de camarote dos atores e atrizes, e os momentos de descanso que partilham juntos, o que será, para eles, bastante mais intrusivo e complicado do que serem filmados a praticar atos sexuais.

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Rocco é um filme obrigatório para todas as pessoas que de alguma maneira têm preconceitos sobre a indústria da pornografia, mas não só para estas. Por si só, este é um filme muitíssimo bom, que nos faz questionar o nosso próprio pensamento e que não deixa absolutamente ninguém indiferente (a sala de cinema congelou durante uns bons dois minutos após o final do filme). Serão sempre estes os filmes mais necessários de todos, os que retratam um tema fraturante e tentam desmitificar e contrariar opiniões mal formadas ou desatualizadas. Este filme é como um soco no estômago, e é o que pretende ser.

O filme acaba também como qualquer final de uma relação sexual: de maneira orgásmica. A maneira intimista como a equipa captou a última cena da carreira de Rocco Siffredi é de levar as mãos à cabeça: a beleza e realidade crua e humana daqueles dois minutos de êxtase são das cenas mais bonitas que algum dia vi em salas de cinema. Tudo termina em celebração, num misto de festa e tristeza – afinal de contas, este era o último filme, o legado de Rocco Siffredi. Rocco  é uma obra-prima documental que deve estar na lista dos obrigatórios do ano de qualquer interessado em cinema.

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