‘Moonlight’, um filme memorável sobre a descoberta de identidade

por João Estróia Vieira,    4 Fevereiro, 2017
‘Moonlight’, um filme memorável sobre a descoberta de identidade
PUB

Baseado na peça In Moonlight Black Boys Look Blue, de Tarell Alvin McCraney, a segunda longa-metragem de Barry Jenkins é um dos filmes com maior número de nomeações aos Óscares e, também por isso, um dos filmes que mais curiosidade tem suscitado, não fosse ele o grande “adversário” de La La Land na corrida por algumas das mais desejadas estatuetas como a de Melhor Filme ou Melhor Realizador.

Qualquer texto tweetado e limitado no número de caracteres poderá dizer que Moonlight retrata o crescimento de uma criança gay e afro-americana num bairro social em Miami onde o tráfico de droga faz parte da paisagem urbana. Essa descrição, apesar de não estar errada, é de sobremaneira insuficiente e incompleta ao passar ao lado de toda a beleza, mestria e intuito que o filme consegue, e bem, retratar. Barry Jenkins não está minimamente interessado em tornar os seus actores em símbolos de generalizações simplificadas e, por isso, sem qualquer significado, vazias. Pelo contrário. Moonlight está construído e escrito de forma fabulosa, deixando de lado quaisquer categorizações pueris não deixando que os rótulos controlem a sua mensagem ou sequer se sobreponham a esta.

Dividido em três actos representativos de diferentes fases da vida (criança, adolescente e adulto) do seu personagem principal, Chiron, todos eles são identificados por diferentes nomes pelos quais ele se vai dando a conhecer. Esta escolha não é feita por conveniência nem tão pouco de forma aleatória. O filme debate-se fortemente sobre uma busca de identidade, sobre a busca do ser, e se há um tema que sobressai em Moonlight é esse. A diferente nomenclatura para cada um desses actos é sintomática dessa descoberta interior constante.

«A certa altura da vida tens de decidir quem queres ser. Não podes deixar que ninguém decida isso por ti.» Estas são palavras dirigidas a Chiron por Juan, logo na parte inicial do filme. Interpretado por Mahershala Ali, o Remy Danton de House of Cards, a personagem Juan é um papel imaculado e forte candidato ao Óscar de Melhor Actor Secundário apesar do seu pouco tempo em ecrã. É de resto com Juan que teremos algumas das melhores cenas do filme, sobressaindo à cabeça uma de quase baptismo dentro de mar, onde este ensina Chiron a nadar. É também ele que, com estes ensinamentos, dá o mote para o processo narrativo do filme.

Moonlight traz-nos a história de uma pessoa que podia bem ser outra qualquer, sem as especificidades acima descritas. Mas não é. É a forma imaculada como é retratada a vivência, a sexualidade e o crescimento de alguém tremendamente afectado pelas vicissitudes da vida, pelo meio que o rodeia, e de que forma isso molda uma pessoa ou a vai impedindo de ser quem ela está destinada a ser, ou, por outro lado, esconde ser.

Além das assinaláveis prestações de Mahershala Ali e Naomie Harris, a mãe de Chiron, este é interpretado ao longo do filme por três diferentes actores, consoante a fase da vida. Todos eles oferecem estrondosas performances, mas é Ashton Sanders quem sobressai, ao interpretar aquela que é porventura a mais marcante, na fase da adolescência. Um papel memorável na forma como com a sua postura e linguagem corporal nos transmite um conjunto de emoções incomunicáveis ao mesmo tempo em que dá à personagem uma densidade psicológica assinalável e necessária.

Barry Jenkins não tem medo de correr riscos, e muito menos de deixar a sua marca e cunho pessoal num filme que é, por isso, de forte cunho autoral. São também esses riscos que diferenciam este Moonlight do seu antecessor indie nos Óscares, Boyhood, e o tornam memorável. As irrequietudes da câmara, as imagens desfocadas, os planos prolongados na face dos protagonistas enquanto o diálogo prossegue (como se naquele momento a face e a pessoa a quem pertence fosse a única coisa que interessasse) e aquele momento que se perdura na memória, e não o que ela diz. Tudo isto são constantes e traços representativos de uma mensagem própria que se conjuga na perfeição com uma banda sonora intocável e uma fotografia fantástica, com uma palete de cores riquíssima.

O final, esse, é daqueles que geralmente não se gosta nada, por não nos dar respostas, e por nos deixar um amargo de boca com a sensação de faltar “algo mais”. Talvez seja isso que torna esse mesmo final tão humano e tão certeiro. Não deve haver nada mais representativo do que é a vida do que um final que não nos dá respostas a tudo o que desejaríamos. Moonlight é um filme marcante, capaz de ficar a remoer na memória e perdurar em nós como poucos.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados